A diferença, indicada por Lacan, entre a escrita, como referida à letra, e o escrito, ou escritura, fazendo referência ao significante, não se apresenta homogeneamente ao longo do seu ensino. Assim é, que a distinção de que se trata aparece ora designada por esses mesmos termos, ora por uma série de derivações a partir dos significantes escrita, escrito, escritura, e outras tantas oportunidades para que os doutos se manifestem. Entretanto, o que temos a reter, em princípio, é que
a letra é trabalho do real. O texto, é trabalho do significante. Portanto do simbólico/imaginário. E o corpo é trabalho inaugurado por lalangue, talhado em litoral pela letra de um lado, e pelo traço do outro; que o simbólico mortifica, a pulsão reanima, e imaginário põe em pé.
Se o inconsciente se estrutura como uma linguagem, ela se estrutura para dar conta de lalangue. E como se estrutura uma linguagem? Pela falta. Sem essa casa vazia não haveria nenhuma possibilidade combinatória, não haveria significante. Ter lalangue no DNA do inconsciente, e portanto da linguagem, é dizer que ela se estrutura pelo furo, tanto quanto pelo traço. É pela linguagem que o gozo vem ao corpo. O gozo se aloja nos buracos da estrutura de linguagem. Se ela é “uma elucubração de saber sobre lalangue”, o inconsciente “é um saber, um saber fazer com lalangue”. Ele escreve seu texto. “Esse trabalho de texto que sai do ventre da aranha, a sua teia”. Milagrosa de se ver surgindo de um ponto opaco, desse ser estranho, desenhar-se o traço desses escritos, onde perceber os limites, pontos de impasse, becos sem saída, que mostram o real acedendo ao simbólico, diz Lacan. E ardendo no imaginário, eu acrescentaria. É isso que importa na literatura, a literaterra. Não o sentido do texto, mas que pelo fato de ser trama, tecitura, evidencie que é feita de furos, tanto quanto de fios. Todo psicanalista, é antes de tudo um leitor. Mas, de ficção? Perguntariam alguns? Sim. E o que não o é? Além do mais, ir ao divã não pode erigir, na vida do sujeito uma pista, onde um corpo antes paralisado possa, enfim, bailar um pouquinho?
Angela Valore
*Evento realizado em Curitiba no dia 23/03/2024 na Associação Médica do Paraná.