Sobre inibições e angústia na adolescência

Sobre inibições e angústia na adolescência

Angela M. S. Valore

Penso em alguns adolescentes que chegam hoje em dia aos nossos consultórios, nesse estado que bem poderia evocar o que foi dito de Hamlet, não fosse o fato de, ao menos à primeira vista, suas vidas em nada lembrarem o trágico ou o grandioso. Deles também há quem diga que não querem. Eles dizem que não podem. Mas a verdade, também para eles é que não podem querer (1).

Aliás, o próprio fato de que venham nos ver é um acontecimento pouco comum, visto que parecem perfeitamente alheios à angústia. Seria de perguntar então, porque me ocupo deles, quando a angústia é o meu assunto.

Ocorre que há alguns anos venho observando uma certa inclinação do que vetoriza as demandas de tratamento, num ângulo um pouco discordante, talvez, daquele que em geral tem nos interrogado mais. Nas últimas décadas temos sido levados a nos referir, principalmente no que concerne aos adolescentes, às toxicomanias, aos transtornos alimentares, à delinqüência, estadoslimite, fenômenos de borda... Enfim, ao que tem sido chamado de novas patologias, novas formações clínicas.

Sem diminuir sua importância e sem excluí-las, de minha parte, tenho tido ocasião de me perguntar também o que é feito das velhas formações clínicas. Sobretudo, em relação a um certo estreitamento do campo do sintoma, a respeito do qual já se tem dito tanto, ao que parece ser um agravamento, se posso dizê-lo assim, seja quanto à frequência, seja quanto à severidade, dos quadros de inibição entre os nossos jovens.

Situada em uma espécie de marco zero quanto à dimensão do movimento, a inibição tem a ver justamente com a detenção desse mesmo movimento próprio de toda função. Sobre o que permitiria traçar a fronteira entre inibição e sintoma, Freud(2) sugere que alguém possa estar afetado pela inibição quando sofre uma diminuição ou paralisação, por exemplo, na sua capacidade de deslocamento, ou de ingerir alimentos; paralisação convocada pelo excesso de sentido, que sabemos, é sempre edípico e se traduz numa sexualização dessa função. E que o sintoma, por sua vez, seria caracterizado por acréscimos, pela criação de algo novo. É claro que esse critério deveria servir pelo menos para nos lembrar, como ponto de partida, que o sintoma é formação do inconsciente, é metáfora, enquanto que a inibição concerne ao eu.

Poderíamos fazer aí toda uma digressão em torno do caráter metapsicológico dessa distinção, para concluirmos pela inutilidade de tais classificações, diante da complexidade e da singularidade da clínica.

A verdade é que de pouco valeu para Lacan essa abordagem fenomenológica. Ele se refere muito mais a uma relação do que a uma diferença, quando diz que “nossos sujeitos estão inibidos, quando nos falam da sua inibição, quando falamos dela em congressos. Mas todo dia estão impedidos. Estar impedido é um sintoma; e inibido é um sintoma posto no museu” (3).

Essa pequena referência tem me feito pensar se não haveria uma articulação possível, no sentido de um certo determinismo, entre o que vem sendo proposto já há decênios por Melman como uma transformação ética cujo efeito, sabemos é a produção dessa nova economia psíquica que ele indicou (4) , para a qual poderíamos dizer que o sintoma, como nós o conhecemos, teria se tornado obsoleto; e o fato de haver cada vez mais “sintomas postos no museu”.

Pergunto-me se seria forçar demais a metáfora de Lacan, pensar que em função do efeito desviante desse declínio ético, na cultura e ao longo do tempo, nós nos encontraríamos hoje em nossa clínica, em um extremo, com os sujeitos que habitam o cenário neurótico e são signatários do mal-estar, que nos trazem seus sonhos, seus sintomas; no outro extremo com sujeitos desfalecentes, desalojados do sexual, marcados como resume Lebrun (5) por uma erosão das fronteiras entre as estruturas e pelo recuo das entidades clínicas clássicas. E no espaço intermediário, com um número crescente de “sintomas postos no museu”.

A inibição aparece então apartada da angústia e, portanto, dificilmente representa para o sujeito a mesma implicação que tem o sintoma, no que concerne à dificuldade que lhe é própria, razão pela qual a inibição por si só raramente dá ensejo a uma demanda analítica.

Essa característica museológica da inibição, aparece associada com o que foi chamado de gozo sígnico pegajoso (6) , sendo que essa “qualidade sígnica” seria determinada pela manutenção propriamente vivencial, de uma crença que o sujeito sustenta, sobre sua inibição, como sendo o que afirma; sem deixar espaço para o equívoco, dificultando inclusive a operação do significante na intervenção analítica; aderido pois a este visco pelo qual é levado muitas vezes a dizer que é assim, e daí? O que vai fazer? Fala que bem poderia ser atribuída a Hamlet pai, cujo papel sabemos, foi o de não ter podido ser suficientemente vivo, para depois não poder ficar decentemente morto.

Mas evoca igualmente a história de um jovem, vou chamá-lo de Lucas, que aos dezoito anos, logo verão, em plena adolescência apresentava-se como a presa resignada de uma armadilha, da qual um dos laços era uma absoluta inibição sexual, outro uma certa tendência a procrastinar em certos assuntos. Se, para Bergès (7) a adolescência caminha de par com a urgência, na de Lucas as coisas eram diferentes. É bem verdade que o próprio Bergès recomenda que o que constitui a classe dos adolescentes é a exclusão de todos que não têm esse caráter e que é sobre a diferença e não num traço comum que se apoia a pertinência a esse não lugar.

Enfim, esse rapaz veio me ver, depois de uma entrevista que havia pedido sua mãe. Ele sabia que ela viria e não viu problema nisso. Quando veio pela primeira vez disse que não tinha queixa alguma e que achava que sua mãe se preocupava desnecessariamente, mas que havia concordado mesmo assim para não deixá-la triste. E também porque seu pai pedira que ele fizesse, como sempre, a vontade dela. A aludida “preocupação desnecessária” da mãe, era com o fato de ele fumar maconha. Pronto, pensarão! Aí estamos de volta ao tema das toxicomanias! Mas não. Em absoluto.

Embora ele já fumasse desde os quinze anos, com uma certa frequência, ele não era sob nenhum aspecto um toxicômano.

Para a mãe que havia descoberto o fato um ano antes, era um caso seriíssimo. Revoltava-se com o marido, que tinha, ele próprio, sido um fã da maconha muito além dos anos da juventude e que não via mal nenhum na conduta do filho que, diga-se de passagem, aos dezoito anos já cursava o segundo ano da universidade. Ele não se considerava um aluno aplicado, mas mediano, dadas as dificuldades que tinha com certas matérias e algumas escapadas. Já trabalhava, a título de estágio, num escritório de arquitetura afamado. Apresentava-se muito bem, fosse quanto aos seus modos, fosse quanto à sua fluência verbal. Praticava o ciclismo, não competia, mas encontrava nele o justo pretexto para passar o maior tempo possível fora nos fins de semana. Nas raras vezes em que era autorizado a sair à noite, era para sofrer o constrangimento de atender a uma ligação de sua mãe, a cada dez minutos, mais ou menos a partir das onze horas, interpelando-o sobre o que estava “aprontando” até aquela hora e ordenando que voltasse. De modo que antes da uma hora ele já capitulava. Se não o fizesse telefonava-lhe seu pai, que certamente a mãe acordara e que a contragosto confessava não se incomodar que o filho ficasse um pouco mais, mas pedia por favor que ele voltasse para não contrariar sua mãe e para que ela o deixasse dormir.

Na época de suas primeiras entrevistas, Lucas havia obtido a carteira de habilitação e ganhou seu próprio carro. Mas ainda dependia de autorização para sair com ele. Recebeu-a, num sábado pela manhã, para ir a um churrasco numa chácara em um município vizinho. Teve um incidente a caminho, pelo impacto de uma pedra no para-brisa. Ligou depois para casa, informando o ocorrido e assegurando à mãe que nada de mal lhe acontecera e que inclusive, já havia passado na concessionária, trocado o vidro e estava se dirigindo ao tal churrasco. Se nos perguntamos o que o compele a fazer reparar prontamente o dano, iniciativa esta indissociável do impulso de dar contas à mãe de que ambos estavam inteiros, somos tentados pelo caráter anedótico da cena a lembrar que afinal, ambos eram zero quilômetro. Estando lá há pouco mais de uma hora, ele foi surpreendido pela chegada do pai, que apesar das poucas indicações que tinha, conseguiu encontrá-lo, praticamente se desculpando pois, como disse, se não fosse a esposa “o mataria”. Atendendo a um pedido dela deixou seu carro com o filho e levou o deste, como prova de que estava inteiro, para que Lucas não tivesse que voltar ele mesmo, a mostrar que estava bem.

Ocorria a ele, eventualmente, a ideia de não atender aos telefonemas da mãe, mas não o fazia, sob a alegação de que já havia tentado e que tinha sido “pior”. E também porque tinha pena do pai, a quem a mãe por certo atormentaria se o filho não a atendesse.

Fora disso, era um rapaz simpático. Fazia sucesso entre as moças. Mas ele nunca havia namorado. Nem havia “ficado”. Nem nada. No início dizia que isso não o preocupava, que era melhor assim, porque não iria “se amarrar” com aquela idade. Era pois, a sua liberdade, quem diria, que ele tratava de preservar! Isto, como tudo aliás que dizem os adolescentes, é para levar a sério e tentarei me haver com essa aparente contradição mais adiante.

O combate encarniçado dessa mãe ao uso da maconha, que quiçá já representasse para ela uma espécie de “terra do nunca”, para onde seu próprio marido escapava ao seu domínio na juventude, faz pensar além disso, numa versão adolescente do que seria a interdição pela mãe das práticas masturbatórias na infância, que é vivida pelo infante como presença intrusiva do desejo da mãe se exercendo a respeito do seu corpo. Parece que sem sabê-lo, e ainda que Lucas tivesse que não velo, a mãe adivinhava o lugar do que a maconha ocupava.

Quanto a ele, acrescentarei ainda uma ou duas coisas. Mais tarde, depois de um período em que vinha analisando o papel da maconha no seu isolamento e à medida em que ia se dando conta de que ela o poupava de pensar nas mulheres e no sexo, ou melhor, na ausência dele, cuja “normalidade” já começava a questionar, formulou o seguinte: “Parece que nunca estou longe dela o suficiente para poder transar com uma garota sem ela se meter no meio. Então mesmo que eu pedale até o fim do mundo, quando eu chego lá, acendo um baseado e nem penso em mulher. Mas se eu vou a uma balada com os meus amigos é a mesma coisa. Então tanto faz.”

Mais ou menos aos quinze anos, por razões ligadas ao trabalho dos pais, Lucas precisou passar algum tempo na casa de seus tios, que não tinham filhos, viajavam e saíam muito. Ele podia

fazer o que quisesse. Seria de pensar que nesse período em que esteve sem nenhuma supervisão de adultos ele tivesse aproveitado às largas. Mas não. Foi nessa época que se afeiçoou à maconha. Fora ela, ou graças a ela, qualquer outro uso que ele pudesse fazer da sua suposta liberdade, ficou suspenso.

Num momento mais ou menos recente, finalmente um pouco indignado com a atitude do pai, animou-se a uma conversa com ele e pediu que o pai afinal o ajudasse, dando uma “segurada” na mãe. O pai, para tristeza de Lucas, sugeriu que ele pedisse a mim, sua analista, para falar com ela, a mãe. Ao que o jovem, agora sem dúvida analisante, respondeu: “Está louco? Se a mãe souber que eu não vou à análise para me livrar da maconha, mas para me livrar dela, nunca mais ela paga a analista e aí, acabou-se a análise para mim!”. Creio que ele próprio foi tomado de surpresa por sua afirmação de que estava ali para se “livrar dela”, já que até então nunca a havia formulado.

Como veem, ele sabia, finalmente que não poderia contar senão com escutar a si mesmo e que era com dinheiro, embora ainda não fosse o dele, que se pagavam as sessões, e não com a sua paralisia.

No entanto, se ao longo do seminário X, Lacan insiste na importância de preservar a dimensão da angústia, seguramente não é para que possamos encher nossos cofrinhos.

O desenvolvimento da função da angústia acompanha o desenvolvimento do (φ), falo maginário negativizado e do objeto a, como duas formas heterogêneas da falta e portanto relacionadas com a angústia, embora não da mesma forma. Lacan nos diz que o desejo se sustenta no fantasma, em sua moldura, que ele afirma ser da mesma estrutura da angústia. Apresenta-os assim, no grafo do desejo, no qual se alinham as respostas possíveis ao Che Vuoi, à pergunta sobre o que me deseja o Outro. A primeira resposta ao enigma “o que o Outro quer de mim?” seria o S( ) castração do Outro como desejante e que se traduziria mais ou menos como: nada. O Outro não quer nada de mim. Ou, melhor, não é de nada de mim do que o Outro é faltante. Essa seria a resposta mais dificilmente suportável, capaz tanto de nos libertar quanto de nos condenar à angústia.

Portanto esse é também o lugar de sua emergência. É o gonzo no qual se articulam as suas relações ao mesmo tempo com a castração e com o objeto a. Porque o risco é que não transite o desejo do Outro como enigma, quer dizer, que haja uma resposta e que ela seja diferente daquela que mencionei há pouco. É preciso que o Outro dê sua falta, sua castração, para que eu possa ser a para ele. Mas é preciso que, como a eu possa causar seu desejo e não obturá-lo.

Que ele siga faltante a despeito de mim. Quando, no confronto com o Che Vuoi não posso me assegurar de que a resposta seja esta, sou presa da angústia. Pode-se avaliar a natureza decisiva da intervenção do nome-do-pai nessa circunstância.

Eis aí uma encruzilhada onde o que me aguarda é, inevitavelmente, ao mesmo tempo, o mais familiar e o mais ameaçador. O que há de angustiante no desejo do Outro não é só que eu não saiba que a eu sou para ele, mas que eu não saiba com o que do Outro me encontro nesse ponto. Se no momento do estranho o sujeito se experimenta como puro objeto, privado de sua autonomia é como se o recobrimento narcísico do eu se descosesse. Ameaçada a identificação ao i(a), imagem narcísica, o risco é de que o i'(a) perca sua dignidade, pelo que seu corpo não faria ali mais imagem especular ou nada de digno, senão que estaria reduzido a pedaços de carne. Duplo real em sua relação com Unheimlich, da qual se deduz o mais aterrador, o mais paralisante na angústia. O piso em que, no grafo do desejo Lacan situa i(a), a imagem narcísica cujo suporte, cuja constituição depende justamente de que o Outro nos dê a sua falta, a sua castração, é também o lugar onde se enoda a inibição. É inclusive de i(a), da manutenção da sua função na sustentação do desejo que depende o atravessamento do luto. O que confere à inibição e ao luto intransitável esse parentesco que Lacan não deixa de nos indicar, quando se refere por exemplo, a Hamlet e à sua mãe que não teria consentido em que lhe faltasse o objeto. Somos assim introduzidos em um desdobramento do luto na estrutura do sujeito. De um lado o próprio sujeito tem que ser perdido como objeto de gozo do Outro. De outro lado, perde-se o Outro e é pelo lugar de causa que ocupava na relação que agora o sujeitinho tem que fazer o luto. O que depende, naturalmente, da castração no Outro. É no nível desse primeiro viés que a falta pode faltar. Que pode faltar o apoio da falta do Outro. Quando dizemos que a angústia não é sem objeto é porque este lugar poderia de repente aparecer como habitado, determinando-a, ou dando lugar às inibições típicas da ausência do luto. Alguém só pode se tornar objeto, ocupar o lugar do que causa o desejo do Outro, uma vez que o Outro o perdeu. Não se pode ser causa de nada, sem ter sido perdido. Por esta razão a cena montada por Hamlet sobre a rivalidade com Claudius, não o liberta da inibição. Leva-o, talvez ao actingout, mas não ao ato.

Porque Gertrudes não perde nada. O tio matou o pai e tomou o seu lugar. Nessas condições se Hamlet o matasse, tomaria por sua vez esse lugar, visto que um vale pelo outro.

Assim como Hamlet pai, o pai de Lucas parece disposto a atender todos os pedidos de sua mãe. Mas não se mostra capaz de aceder ao seu desejo. O que dizer então do desejo desse homem que se deixa ficar comodamente nesse lugar?

Lacan articula a cessão do objeto pela criança como o ponto de irrupção do Unheimlich, referindo-se ao objeto anal como o que melhor representa a série dos objetos cessíveis, porque sobre ele se exerce o caráter mais angustiante do desejo do Outro representado aí pela demanda da mãe.

Que testemunha ainda mais o seu domínio, por ordenar ao sujeitinho a reter do que a dar, que seria, se houvesse um, o curso natural das coisas. É preciso que ele o ceda, mas para fazer jus ao gozo do Outro, é preciso que ele o retenha. A pergunta sobre o que é afinal a inibição, encontra sua resposta na relação ao desejo de reter. Diante do “Agora guarde. Agora dê”, na dúvida, o melhor é reter. Por essa via Lacan nos conduz a uma nova interpretação do que fora proposto por Freud, dizendo que há inibição, quando se dá a introdução numa função de um outro desejo diferente daquele que a função satisfaz. Assim o lugar da inibição indica também o lugar onde o desejo se exerce e onde apreendemos uma das raízes do recalque originário, a da representação de uma falta. Trata-se portanto da ocultação estrutural do desejo por trás da inibição.

O sujeito sabe que há um desejo que se oculta, mas não sabe que resposta dar a ele. Na dúvida a sua única liberdade é reter. E eis aí o que me propus a acrescentar sobre aquela contradição aparente no caso de Lucas. Afinal, o sexo tem que ter uma significação sexual para ele, não para sua mãe. Enquanto ele não pode se assegurar disso, sua única defesa, miserável talvez, é reter.

Na inibição há na verdade uma tentativa de permanecer desejante como defesa, para inibir um ato potencialmente angustiante, porque pode fazer surgir do Unheimlich o pior, ou seja: O bem.

Trata-se disso quando Lacan diz que agir é arrancar da angústia a sua certeza. Se para Hamlet, a cena dos comediantes não passa de uma ratoeira na qual ele se deixa prender pelo próprio rabo, ela seguramente não resolve a sua inibição. Lacan situa aí uma das formas de identificação imaginária, mas ao a em i(a), que portanto continua no próprio âmago do registro da inibição. Entretanto, a morte de Ofélia faz desaparecer alguém de cujo desejo Hamlet se dá conta de ter sido causa. Assim, Ofélia se torna ela mesma objeto de seu desejo. A perda desse objeto consumada introduz, retroativamente a dimensão da imperfeição, da falta, portanto do lugar de causa. A partir daí Hamlet se torna capaz de matar e de se fazer matar.

Não está muito distante dessa dimensão, a da morte, o risco do ato ao qual se destinava Lucas sem poder querer produzi-lo. Esse desejo oculto por trás da inibição, e cuja ocultação ela mantém, enquanto desejo de não ver, no caso de Lucas vem se redobrar pelos entraves da própria adolescência. Sabemos do impasse ético que representa para todo adolescente a resolução da hesitação pela via de uma assunção do desejo sexual e de uma genitalidade que só pode ser pacificada pelo impulso, tomado ao absoluto desamparo, aí atualizado, para justamente sustentar-se no desejo. Uma vez que não há Outro sexo. Que não há heteros da sexualidade, e que o que há é o Outro do sexo. Um absoluto. Um Outro que nunca posso alcançar. Eis aí um impossível cuja abordagem requer para o adolescente, no mínimo uma certa coragem. Mas é o falo o instrumento que permite ao sujeito chegar ao encontro sexual, ao ato sexual, em meio ao mal-entendido que o significante introduz na relação entre os sexos. Embora essa via dependa dos avatares pelos quais passa o nome-do-pai em cada caso. No impasse vivido por Lucas se denuncia o que Lacan já anunciava nesse texto de 1938 os “Complexos Familiares”, ao qual tenho encontrado tantas ocasiões de retornar: que alguém, um sujeito que não se enfrenta com um pai forte, que assuma os riscos, que “apare o golpe”, acrescentaríamos, da demanda de gozo de uma mulher, impossível de ser satisfeita, enfim, sem um pai que persiga seus objetivos autonomamente; esse alguém não saberia como assumir a autoria em sua vida.

Não sei se estamos ao abrigo de temer que em um futuro não muito distante, essa prescrição exclua não apenas uma parte, mas a grande maioria dos nossos jovens. Poderia juntar a este, o relato de outros casos semelhantes. Alguns aos quais já tenho me referido, inclusive para propor que nesse cenário, ainda que a droga pudesse ter aí um papel coadjuvante, não é de adição, mas de adiação que se trata (8).

Entrementes, as inibições com que tenho deparado na clínica não se limitam obviamente à da função sexual, tampouco aos casos em que essa é suplementada pelo efeito “sexolítico” (9) as drogas. Aliás, na maioria dos casos de inibição de que falo a droga nem sequer comparece. São histórias em que a detenção implica ora a função alimentar, ora a escrita, o desempenho escolar, a locomoção, as habilidades sociais e tantas outras; quando não são muitas ao mesmo tempo. E nessas circunstâncias, às vezes acompanhadas de fenômenos de certa gravidade, que não excluem nem a angústia nem o actingout.

Casos talvez mais próximos do extremo desbordante ao qual aludi antes. Já fomos advertidos (10) de que tudo que se refere a uma clínica da posição do sujeito desejante como objeto, não o encontraremos primordialmente no campo do sintoma, mas entre os pólos designados pela inibição e pela angústia. Como afirma Rabinovich, o que Lacan desenvolve acerca da inibição, é na verdade a elaboração de uma patologia do sujeito colocado em posição de objeto do desejo do Outro, como desejante. E que essa patologia pode ser lida, clinicamente como uma patologia do ato, que se elabora através dos conceitos de inibição, actingout e passagem ao ato.

Descobrir que este Outro de cujo desejo o sujeito dependeria para desejar não existe, o deixa ao desabrigo de qualquer desculpa. O que significaria ter que se haver com o próprio gozo. Mas justamente, o sujeito implicado nessa patologia do ato é aquele para o qual a descoberta do vazio do lado do Outro não é segura, de modo que, ao invés da dúvida, do enigma, é uma certeza que o sujeito tem que aplacar com sua “patologia”.

Seja por tudo que já tem sido dito sobre o declínio do nome-do-pai e suas consequências, seja por duas delas, em particular: a ausência do luto e a perturbação daquilo que no sujeito é devido ao gozo fálico, não é incomum encontrarmos na clínica aqueles nos quais a presença maciça de inibições impede o acesso ao ato, mas não às atuações. Entre elas têm me chamado a atenção as incisões no corpo que, longe de fazer escrita, tenho associado a uma resposta atuada, esta sim a uma angústia tomada como sinal de perigo, na tentativa de fazer sair o Outro tóxico. Isto em sujeitos que parecem viver sob uma espécie de ameaça de atualização do trauma do nascimento, que sabemos, não é o da separação da mãe mas o da não separação, metaforizada na angústia tóxica inaugural.

Ter que respirar, de hábito abre a via por onde deverá passar a palavra, nos seres falantes. Mas a palavra é ato e nesses casos é actingout que se apresenta.

Sobre uma outra incidência clínica preocupante que me parece concernente também a essa patologia do ato, recordamos que Lacan propôs que a hipercinesia, pelo menos em estruturas neuróticas, consiste nessa agitação como tentativa reiterada de sair da inibição. Não é uma ideia original pensar que a maior parte das alegadas hiperatividades, e chamados transtornos de atenção, que literalmente pululam, por exemplo, nas escolas, seja dessa ordem e indique a presença de uma inibição. Nossa incapacidade, enquanto laço social, de nos deixar atravessar por este estremecimento, de escutar o que não faz apelo aí, tem condenado nossas crianças a crescer em uma subjetividade engessada.

Não há passagem por aí. E pela Ritalina transformada na aspirina infantil do nosso tempo, tampouco.

 

REFERÊNCIAS:

(7) BERGÈS, Jean. O corpo na neurologia e na psicanálise: lições clínicas de um psicanalista de crianças. Porto Alegre: CMC, 2008.

(2) FREUD, Sigmund. [1926]. Inibição, sintoma e angústia. In:_______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud . Rio de Janeiro: Imago, 1986.

(6) HARARI, Roberto. O seminário “a angústia” de Lacan: uma introdução. Porto Alegre: Artes e Ofícios Ed., 1997.

(1) LACAN, Jacques. Le Séminaire, livro VI (195859), Le désir et son interprétation , inédito, lição de 11 de março de 1959.

(3) LACAN, Jacques. O Seminário, livro X (196263), A Angústia , publicação para circulação interna, CEF – Recife/1997.

(5) LEBRUN, JeanPierre. Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica psicanalítica do social. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004.

(9) MELMAN, Charles. Adolescência e drogas. In:_______O Adolescente e a modernidade. Tomo I. Congresso Internacional de Psicanálise e suas Conexões – Escola Lacaniana de Psicanálise. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999.

(4) MELMAN, Charles, 1931. O homem sem gravidade: gozar a qualquer preço / Charles Melman; entrevistas por JeanPierre Lebrun. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003.

(10) RABINOVICH, Diana. A Angústia e o desejo do outro. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005.

(8) VALORE, Angela M. S. Y atil une clinique des toxicomanies? In:_______Le Trimestre Psychanalytique N°2/1997. Toxicomanies: les psychanalystes et la méthode chimique. Publication de La Association Lacanienne Internationale – Paris.

___________Há uma clínica das Toxicomanias? Versão em português In:_______Jornal da B.F.C. N°5. Curitiba: Agosto, 1997.

___________Adolescência e Toxicomanias. In:_______O Adolescente e a modernidade. Tomo I.

Congresso Internacional de Psicanálise e suas Conexões – Escola Lacaniana de Psicanálise. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999.

por: Angela Valore