Texto no divã

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Texto no divã
 

Trabalho produzido em Cartel inscrito na Letra- Associação de Psicanálise sobre Psicanálise e Literatura

Ao pensar sobre como surgiu a intenção de formarmos esse Cartel, me recordo que, inicialmente, ocorreu uma conversa entre mim e uma amiga da Letra, considerando todos os sentidos dessa expressão amiga da Letra.
Além disso, também me lembro que aquela conversa não aconteceu em qualquer lugar. Acredito que naquele momento e, parando para pensar melhor, o local e as circunstâncias também marcaram sua importância. Estávamos na faculdade em que cursei Psicologia, era um evento especial em que comemorávamos uma década da existência da Letra e, supreendentemente, recebemos como presente da Letra, uma caneta.
Então, na medida em que vou escrevendo, vou me lembrando e assim vai se descrevendo o pré-texto desse Cartel, inclusive, em relação a essa escrita.
Assim, vou seguindo essa linha, ponto a ponto, e me deparando com mais lembranças, talvez encobridoras, mas, para não perder o “fio da meada”, tento aproveitar essa junção que me revela outra recordação.
Naquela época em que conversei com a amiga da Letra, eu também estava escrevendo minha dissertação para o mestrado em Literatura e, apesar da satisfação encontrada naquele trabalho, me lembro que em alguns momentos estava em conflito por querer aprofundar as articulações entre a Psicanálise e os textos literários, mas não foi possível naquele período.
Desse modo, frente a essa rede de recordações, concluo que entrar naquela conversa com a amiga da Letra, além de pré-texto, também foi um pretexto, pois acabou sendo providencial para meu desejo.
Então, se o desejo de articular Psicanálise e Literatura já estava alinhavado com a possibilidade de inscrever o Cartel na Letra, fomos ajustando os outros pontos, convidando mais duas amigas da Letra, das letras e, depois do aceite delas e da mais-um, começamos nosso trabalho.
Após escolhermos textos de referência para nossas reuniões comecei a me deparar com algumas questões. E, entre leituras, releituras, conversas com as cartelandas e reuniões com a mais-um, fui encontrando, ou melhor,
reencontrando diversos pontos que eu gostaria de articular desde antes do Cartel.
Assim, com o trabalho em Cartel, notei que as diferentes questões foram se delimitando, circunscrevendo um ponto que está na interface da Literatura com a Psicanálise, ou seja, o texto.
Entretanto, para introduzir a principal questão a respeito desse tema, o texto, vou descrever um breve fragmento de um caso clínico que acompanhei no consultório. Tratava-se de um rapaz que me procurou com a queixa de muita angústia e que, inicialmente, ele não identificava nenhuma causa. Contudo, a partir da escuta realizada durante as entrevistas preliminares ele disse que aquela angústia tinha começado com uma ansiedade que ele associou ao exercício da sua profissão. Ele trabalhava na área da publicidade e marketing digital e dizia que, no começo, sentia-se pressionado pelo coordenador do seu setor que o tratava “como se eu fosse uma criança, ele fazia terrorismo para eu escrever textos”. Filho de professora, como ele destacou em uma das associações, dizia que, inicialmente, “tirava tudo de letra”. Todavia, quando as cobranças chegaram num nível em que sentiu medo de ser demitido, a ansiedade aumentou, e ele começou a utilizar um aplicativo que usa a chamada inteligência artificial, para produzir textos. Dizia ele que em poucos minutos o programa fazia o que ele levaria dias para escrever. Eram textos que, segundo ele, tinham uma coerência e serviam perfeitamente para a finalidade do seu trabalho. Assim, usando o tal aplicativo, a pressão do chefe acabou. Porém, concluiu ele que, com o passar do tempo, a ansiedade por não conseguir escrever todos os textos que seu chefe pedia, acabou se transformando numa angústia insuportável e, surpreso, ele não conseguia entender o motivo. Depois, durante a análise, parece que começou a perceber que a causa da angústia estava ligada aos elogios que o chefe fazia sobre os textos que, na realidade, ele sabia que não eram todos de sua autoria.
Então, mesmo que possa parecer uma pergunta simples, o que é um texto? Para que serve um texto? O que é tecido através dele?
De acordo com o dicionário, atualmente, texto é definido como um documento organizado de palavras ou frases de uma língua, que, escrito por um autor, compõe um conjunto com o intuito de transmitir e provar determinada ideia, doutrina ou tese.
Por outro lado, em sua origem etimológica, a palavra texto vem do latim texere, que significa construir, tecer, entrelaçar, cujo particípio passado textus, também era usado como substantivo e significava “maneira de tecer”, ou “coisa tecida”. Com o passar do tempo, ganhou o sentido de “estrutura” e foi somente a partir do séc. XIV, com a sua evolução semântica, que a palavra texto atingiu o sentido de "tecelagem ou estruturação de palavras".
Assim, o contraste entre essas duas definições, revelam alguns aspectos que gostaria de tecer algumas considerações.
Primeiramente, quanto à mudança de significado da palavra texto desde a sua origem até os dias de hoje. Me parece que a mudança em si não revela muito mais do que uma dinâmica inevitável e própria da linguagem. A evolução semântica, como sabemos, acontece com muitas palavras e esse fenômeno é incontrolável e próprio da linguagem que compreende esse deslocamento de sentidos e significações.
Lacan, em seu texto Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1953), abordando o lugar central da linguagem, lembra que a palavra “é uma presença feita de ausência” (p. 277) e que é desse par modulado da presença e da ausência que nasce o sentido das coisas. “É o mundo das palavras que cria o mundo das coisas” (idem). Chamando esse universo de tesouro, Lacan lembra dessa capacidade ilimitada de criação de sentidos que as palavras têm e que mantém o constante por vir.
Portanto, para além da mudança de sentido da palavra texto, me parece mais interessante destacar a parte da definição original que acabou sendo excluída, negada, ou seja, a conotação de estrutura.
Logo, texto também significa estrutura que, por sua vez, é a “disposição de elementos que compõem um corpo concreto ou abstrato”. Estrutura também significa “aquilo que dá sustentação a alguma coisa, uma armação ou arcabouço”.
Além disso, outro aspecto que gostaria de abordar é a característica de “transmitir ou provar ideia, doutrina ou tese” que a definição mais atual de texto comporta.
Penso que vale observar o paradoxo que se formou ao se acrescentar à definição de texto como aquilo que tem a função de provar ideias ou teses. Como poderíamos afirmar que todo texto tenha necessariamente essa finalidade se ele
próprio é composto de palavras e as palavras têm diferentes significações? Isso não quer dizer que um texto não possa ser usado com esta função, porém, obviamente, essa não é a única função de todos os textos.
Sobre este aspecto, Lacan, em seus Escritos sobre A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud, critica as teorias da comunicação que defendem a hipótese de que é possível transmitir uma informação sem que haja alterações no significado entre o emissor e receptor. Além do mais, Lacan também questiona radicalmente os limites da razão, destacando que, desde Freud, com a descoberta do inconsciente, a linguagem não é um simples meio de expressão do pensamento.
A respeito disto, o psicanalista Roland Chemama (2002), em seu livro Elementos lacanianos para uma psicanálise no cotidiano, lembra que, seja qual for, “o texto não precisa ser uma oportunidade para fazer funcionar um sistema já acabado”. Exemplificando, Chemama refere-se às teorias, dizendo que o texto não é uma ilustração de um pensamento já terminado.
Portanto, se o texto não precisa ser um meio para transmissão de informações, o que mais ele pode ser?
Para a Literatura, enquanto arte de criar e reinventar textos, o texto não gira em torno da compreensão do leitor, muito menos da simples transmissão de informações.
Então, se por definição texto é uma estrutura armada por palavras para dar sustentação a alguma coisa, e não é a comunicação o seu intuito, o que será que o texto literário pode apoiar?
Subvertendo as convenções da escrita que valorizam o sentido na construção das frases e a linearidade do pensamento, compondo de forma criativa e inédita, o texto literário sustenta o inesperado, o não-sentido e a criatividade a partir do diverso.
A poetisa e escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol (1931 – 2008) elaborou o conceito de textualidade através do qual ela descreve uma característica contida em muitos textos literários. Nem todos, mas sobretudo, naqueles confeccionados por poetas e romancistas.
A partir do conceito de textualidade, Llansol apontou para o efeito de atravessamento que alguns textos produzem no leitor. A textualidade como
sendo a capacidade que o texto pode ter de expandir, como um tecido que se abre, atravessando o leitor ou proporcionando a ele uma travessia.
Assim, me parece que essa travessia não se refere somente ao leitor. Penso que o texto também pode causar esse efeito de travessia no próprio autor. Então, se de um lado o texto pode ser um pretexto para uma travessia do leitor, de outro forma, o texto também pode ser efeito, produto, resultado daquilo que o antecede como um pré-texto. Desse modo o ato de escrever pode ser uma travessia, ou seja, uma via que leva de um lugar para outro alguma coisa. E seria exatamente isso que faz parte da definição de texto? Sim! O texto, o literário principalmente, pode ser entendido como uma estrutura composta de palavras que sustenta uma travessia, podendo servir tanto ao seu autor, quanto ao leitor.
De tal modo, ao que se refere à relação do texto com seu autor, me ocorre como referência o texto lacaniano Lituraterra (LACAN, 1971), no qual Lacan propõe a noção de litoral. Fazendo um jogo de assonância entre palavras, utiliza o termo litura, raiz etimológica de liturarius, cujo significado pode ser risco, rasura, correção, e o termo littera, que significa letra, mas na sua pronúncia pode-se escutar também o litter, que significa lixo.
Assim, com lituraterra, Lacan diferencia fronteira de litoral, para se referir àquilo que aproxima territórios distintos, como a areia e o mar, mas sem misturá-los, mantendo suas diferenças. Desse modo, Lacan chama de letra o elemento que demarca um litoral entre dois campos heterogêneos, isto é, a letra como aquilo que tangencia e faz borda entre o simbólico e o real, entre o que pode ser representado e o inominável.
Então, será que a travessia que um texto literário pode proporcionar a seu autor é o acesso ao litoral? Será que através do texto, ao estruturá-lo através da linguagem, seu autor atinge a borda daquilo que a letra contorna?
Para Chemama (2002), o poeta pratica esse atravessamento através da escrita de um texto. Diferentemente daqueles escritores que compõem seus textos pela via da razão, o escritor literário, não tenta dominar o discurso através de técnicas e teorias, mas, ao contrário, ele experimenta esse atravessamento deixando-se como depositário da linguagem e seus fenômenos. Sendo assim, a escrita de um texto pode ser uma operação que permite uma espécie de recorte e transmissão disso que o autor acessa, mesmo sem saber.
Ainda a esse respeito, a escritora e poetisa Marguerite Duras (1914 – 1996), em sua obra intitulada Escrever (1993), afirma que “se soubéssemos algo daquilo que se vai escrever, antes de fazê-lo, antes de escrever, nunca escreveríamos. Não ia valer a pena (...). Escrever apesar do desespero. Que desespero, eu não sei, não sei o nome disso” (p. 48). Então, o texto pode apoiar seu autor, inclusive, no atravessamento daquilo que, inicialmente, não faz sentido.
Freud nos ensinou em seu texto Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen (1907) que “os escritores criativos são aliados muito valiosos” (p.18) dos psicanalistas. “Como se nutrem em fontes que ainda não tornamos acessíveis à ciência” (idem), Freud acreditava que os escritores criativos, como os poetas e os romancistas, precedem e abrem caminhos à Psicanálise, e que, portanto, os psicanalistas deviam se deixar atravessar pelas artes como é o caso da Literatura.
Mas o que a Literatura pode ensinar à Psicanálise?
O psicanalista Roberto Harari (2006), em seu trabalho Por que não há relação sexual?, referindo-se a escrita literária, aponta para a existência de uma fenda, sempre atualizada em cada texto, em cada escrito literário. Fazendo referência ao artista italiano Gillo Dorfles, autor de El intervalo perdido (1980), Harari chama escrita intervalar esse fenômeno de reproduzir uma ordem de vazio de sentido no texto, dizendo, então, que o texto literário pode ser uma abertura para novos e inesperados sentidos.
Assim, ainda sobre esse intervalo, ao abordá-lo na direção do tratamento psicanalítico, Harari (2006) estabelece um paralelo entre o texto literário e o que ele chama de texto analítico.
Antes de avançar nessa aproximação, me parece importante lembrar rapidamente que embora existam relações esclarecedoras entre Literatura e Psicanálise, obviamente elas não são a mesma coisa. Escrever e falar são destinos diferentes que a palavra pode alcançar. “Palavra falada é palavra outra em relação à palavra escrita seja no papel, na tela, na parede (...)” (ZANELLA, 2008). Isso significa que não é possível colocar em análise, no sentido psicanalítico do termo, o texto de ninguém. O “demônio da interpretação” (CHEMAMA, 2002) é uma usual ilusão que pode levar alguns leitores a interpretar o texto como se interpreta o sintoma neurótico. É uma grosseria
atribuir elementos de um texto ou técnica as vezes utilizada a um tipo de neurose. Portanto, do ponto de vista da Psicanálise, não é possível interpretar o autor através do seu texto, pois não temos a fala, não temos a associação livre.
Entretanto, como mencionei anteriormente, o ponto que me parece fazer intersecção entre Literatura e Psicanálise é o texto. E se aprendemos com a Literatura que texto, é a estrutura composta por palavras, que seu autor cria e reinventa, num constante processo sempre inacabado, onde o que está por vir pode ter algum sentido, mas somente depois, entre intervalos, rupturas, fins e recomeços, então, podemos considerar que a fala e texto tem uma relação com a linguagem.
No nosso trabalho com a Psicanálise nos deparamos, através da fala do analisante, com algo que se dá a ler. Entretanto, nós analistas, lacanianos, não trabalhamos com a interpretação que propõe novos significados à fala do sujeito.
Se seguimos o ensino de Lacan, entendemos que a fala do sujeito está estruturada por uma rede associativa de significantes e que o significante é aquilo que representa o sujeito para um outro significante. Sozinho, um significante não representa uma única coisa. Assim, é necessário que os analisantes continuem falando e sabemos, portanto, que os significantes escolhidos pelos analisantes nunca se dão por acaso. Todo texto tem pr(é)texto, tem contexto...
Sendo assim, pontuar, sublinhar, questionar o sentido da fala é similar às pontuações colocadas num texto. Segundo Harari (2002), “pontuar é implantar pausas, diferenças, articulações significantes” (p. 128) que atualiza o inesperado abrindo um intervalo que pode ressaltar determinados elementos assim como confrontar o falante com o vazio de sentido.
Desse modo, a prática psicanalítica pode provocar ao longo do seu processo escansões, divisões ou a decomposição do texto apresentado pela fala do analisante. Consequentemente, um dos destinos, como efeito que o trabalho psicanalítico pode causar é uma experiência de “turbilhonamento”, como disse Érik Porget em seu livro A sublimação, uma erótica para a psicanálise. “O termo turbilhão indica, de modo geral, um movimento circular de ar ou de gás que gira rapidamente constituindo um funil vazio” e que o autor nomeia como turbilhão da sublimação.
Mas, será que todo texto é efeito de sublimação? Será que toda análise pode levar à sublimação? Me parece que essas perguntas não têm uma única resposta e, portanto, para respondê-las, é preciso ler cada texto, escutar um a um. Texto à texto.
GLEDSON M. B. DOS SANTOS
16/09/2023

por: Gledson M. B. dos Santos