"Morrer menos idiota": Reflexões sobre o que se espera de uma análise

"Morrer menos idiota": Reflexões sobre o que se espera de uma análise

Angela Valore


Pois hoje sei o que sabia então. Era por isso que
estava em análise: não tinha coragem de nomear
meu desejo

(Pierre Rey)


É tão comum que aqueles que nos procuram se representem por algum enunciado no qual se dizem sem coragem para fazer algo, que poderíamos pensar qua a psicanálise é, antes de mais nada, um remédio para a covardia. O que não seria de todo escandaloso, tendo em conta, entre outras coisas, certas passagens da entrevista encenada por Lacan para a televisão. Entretanto, em outro mal ele teria centrado sua prescrição, alguns anos antes, ao declarar já ter alertado “que a psicanalise é um remédio contra a ignorância”, mas que “ele é sem efeito sobre a idiotice”. Como sempre há muitas versões, no lugar do último termo, às vezes aparece a imbecilidade, ou a babaquice. Sendo esta a que, em geral, conta com mais adeptos.
Que a babaquice tenha mais adeptos do que a psicanálise, é uma verdade que se retroalimenta, dado que ao apontá-la nos outros,revelamos a nossa pópria. Aliás, para Melman, trata-se de um sintoma entre outros, inclusive em torno do qual ele teceu, numa conferência ditada em Bruxelas, uma extensa reflexão. Lembra que somos levados a fazer esse diagnóstico, de babaquice, quando se manifesta uma organização conceitual sustentada num ponto fixo, um ponto de amarração, de referência, ao qual fica submetida toda a vida psíquica e que determina, para se manter, uma lógica de exclusão,ou de rejeição, de tudo que, em sendo assumido,pudesse desmenti-lo, o ponto fixo.
Entretanto,o nosso problema seria que nossa organização psíquica requer,para se estruturar, apoiar-se sobre alguns pontos fixos, comportando,portanto o risco de se ficar preso a eles por toda a vida. Diante disso, podemos concluir que somos todos um pouco babacas, pelo menos ao iniciarmos uma cura analítica. De modo que temos sim o direito de esperar de uma análise que nos propicie fazer algo novo, menos imbecil, com esse sintoma.
Na entrevista que mencionei acima, ao responder sobre “o que é lícito esperar”, Lacan sublinha que a esperança seria o caminho mais curto para o suicídio. Mesmo assim ajunta que “a psicanálise certamente lhe permitiria elucidar o inconsciente de que você é sujeito”. Com duas ressalvas. Uma de não se incentivar a isso ninguém cujo desejo não está decidido. E outra, de recusar o dicurso analítico aos canalhas.
Teríamos encontrado então ai,o limite do “poder” atribuido a uma cura analítica? Com o risco de, ao fazermos disto um ponto fixo, recairmos em nossa própria armadilha, poderíamos concluir já o que não se pode esperar de uma análise, a saber, a cura para a canalhice. Eu de minha parte devo dizer que já pude constatá-lo na prática mais de uma vez.
Se retomamos,porém a pergunta sobre o que afinal se espera de uma análise, a primeira resposta que nos ocorre, talvez por ter sido uma das últimas propostas por Lacan, é a de que uma análise deve conduzir a uma transformação dos gozos. E isto,admitamos,pode não ser tudo. Mas certamente é muito. Muito mais do que podemos lograr cernir no cuto espaço desta intervenção.
O sujeito goza sofrendo. Esse é o gozo “paradoxal e parasita” de cuja extração um percurso analítico finalmente deverá se encarregar. Na medida em que a manutenção desse gozo limita o sujeito aos repetitivos fracassos, embotando sua inventividade, condenando-o à inibição seja ela sexual,intelectual, social,ou o que seja, constrange a margem de liberdade, ainda que exígua, a que ele teria direito. E entre as diferentes formalizações propostas por Lacan nos diferentes tempos da sua elaboração, para o que uma análise deveria prover, a idéia de que,se algo ela deve propiciar ao sujeito seria esta mínima margem de liberdade da qual a fixação de um gozo o priva me parece a mais tentadora.
Lacan ao fazer girar a maquininha dos discursos em torno do saber e do gozo em sua relação com a repetição e com o objeto a, diz que a repetição visa o gozo, mas ao mesmo tempo que é no lugar da perda de gozo introduzida pela repetição que surge a função do objeto a. E o que isso impõe é a fórmula segundo a qual o traço unário, o saber trabalhando, ao introduzir o significante como aparelho de gozo,dá entrada à entropia, isto é, à tentativa de fechamento, de negação das diferenças que resultaria em menor troca,logo em maior entropia. Portanto,repetição dos mesmos fracassos. Leia-se gozo. Entretanto,porque se repete,porque não pode senão se repetir, há perda de gozo. Quer dizer, a rigor, o gozo perdido nã existe. É o fracasso da repetição que o faz existir. Buscá-lo é que o funda como perdido e nos induz a procurar recuperá-lo, e paradoxalmente, gozar enquanto o buscamos. O único gozo realmente perdido do qual Lacan nos fala no seminário XVII seria o gozo animal. Aquilo que perdemos por sermos falantes. O gozo dos corpos da biologia. A comunhão com a natureza. Visto que nunca o tivemos,tampouco jamais foi nossa condição tal comunhão, tampouco ai há qualquer perda a computar.
Entretanto, porque somos falantes e a linguagem é cunha que assegura a nossa falta de encaixe com as coisas. Quer dizer, para que nos erigíssemos como seres falantes foi preciso “perder” algo. E esse algo, que supomos o gozo perdido, é o que buscamos recuperar permanentemente. Inclusive, da maneira mais enganosa, ao buscarmos uma análise, é esta recuperação que visamos. As pessoas não sabem que o seu sofrimento é gozo. Elas não sabem que ali onde lhes falta o que ingenuamente chamam de prazer na vida, é do excesso e não da falta de gozo que padecem. Têm a impressão de que lhes falta gozo para que sejam mais felizes, e supõem no analista o saber sobre isso que lhes falta.
Há então um gozo que é próprio do nosso funcionamento, ao qual se trata de dar lugar. E há um gozo que é excessivo, que nos parasita e que se trata de desalojar. Entre um e outro se impõe o marco do real como impossível. Para os que ousam transpor o umbral de uma legítima demanda de análise, o “trabalho analisante”,como quer Lacan, abre-se a perspectiva de novos gozos, “não sofredores e não parasitários”. Contrariamente ao que se passa no consultório dos dentistas, as pessoas vêm aos nossos para arrancar as obturações.
Mencionei no início a entrevista concedida por Lacan à televisão. Em uma outra entrevista,dessa vez para a rádio belga, gravada ao mesmo tempo em que ministrava o seminário XVII, Lacan evoca os “três impossíveis” de Freud, governar, educar e psicanalisar, para afirmar que
dizê-los impossíveis, só faz garantir,de saída que sejam reais. Da análise dirá,entretanto, que ela se diferencia porque reconhece o real como impossível. Porque não ignora que o real é a causa. Mas o que significa dar lugar ao impossível, como garantia de ter saído da impotência, como fim de análise?
Essa pergunta me traz à lembrança uma passagem de um livro de Roland Chemama, creio, ainda não lançado no Brasil, e que poderíamos traduzir como “ parece que no caso desse meu paciente o gozo do objeto não recobre senão muito mal uma dimensão depressiva que ele tenta evitar e que se liga ao fato de que ele não pode se imaginar a falta,senão sob a forma de uma perda radical. E no fundo a análise lhe permitirá, talvez, reportar-se de uma maneira toda outra à questão da falta e do desejo. Vocês vêem que ao fim de uma cura analítica uma dupla dimensão é posta em jogo. De um lado,a cura conduz a melhor tomar em conta o gozo. Isto não quer dizer deixar-se invadir por ele. Mas também não quer dizer tentar evitá-lo,porque isso conduziria o sujeito a negar aquilo que o constitue. Resta que, com relação a esse gozo que se repete e que coagula a subjetividade”, palavras de Chemama, “o desejo, à condição de que se lhe permita dizê-lo, constitue uma abretura. E a cura consiste,por fim,neste encontro pulsátil entre gozo e desejo, que dá a cada um de nós, o estilo mesmo de sua existência”.
Ao se perguntar sobre a questão do que se pode esperar de uma análise, Melman nos relata que Lacan uma vez disse que “é para permitir ao sujeito que as coisas dêem certo para ele”. Mas que não ficou satisfeito quando um dia o lembraram dessa definição. Em outro momento disse que no fim,se tudo andou bem, o que uma análise produz é um
significante novo, que redimensiona a posição do sujeito, ao relançar as mudanças de discurso,liberando-o,portanto, para a criação.
Isidoro Vegh tem uma frase,que propõe como enigma,no final de um trabalho: ”A arte faz do impossível o real. A psicanálise presentifica para o sujeito que o real é o impossível”. Deixando-me fisgar por esse enigma,eu me arriscaria a dizer que se a arte faz do impossível o real,é que ela o deixa em seu lugar,o real. Ou que ela deixa ao real o seu lugar. Então, se a psicanálise presentifica para o sujeito que o real é o impossível, é ela que o reconcilia com a arte, não é a arte que o reconcilia com o real, como querem os defensores de não sei que mística sublimatória como ideal relacionado ao fim da análise. Digo isto por impertinência. Mas também porque me remete a uma outra passagem em que,alguns anos antes, o mesmo autor, numa aula do seminário sobre o objeto e seus destinos,publicada depois sob o título “ O amor nos tempos da análise”, começa justamente por falar sobre o ódio referido ao tempo final da análise, em que se produz a queda da atribuição ao analista do saber suposto.
O valor do ódio seria tornar “incompleto o Outro do saber e desfazer a ilusão do amor, para que nesse encontro com um pedaço do real, inaugure-se,mais além da análise outra volta, a volta do amor”. Esta simples referência poderia nos servir pra interrogar o destino de algumas análises que não sobrevivem a essa travessia. São casos em que a demanda de análise fenece ante o ineludível descompletamento do Outro do saber. Sujeitos que abandonam a análise movidos por esse ódio transferencial, recusando-se assim, ou se impedindo de cumprir essa segunda volta, representada pelo oito interior.
O autor cita Lacan no Seminário Mais Ainda, quando diz que é o homem, aquele que se vê macho, mesmo sem saber muito o que fazer disto, que, sendo ser falante, aborda a mulher. Só que o que ele aborda é a causa de seu desejo,que Lacan designa pelo objeto a. “ Ai está o ato de amor, fazer o amor,como o nome indica,é poesia. Mas há um mundo entre a poesia o ato.”
Partindo disso,Vegh toma a história de amor de Dante e Beatriz para, analisando-a,pontuar os giros na posição de Dante,que primeiro se propõe como objeto a ser amado por Beatriz,elogiando-a. Depois, de erômeno,passa para sob a barra,como erastes, ao aceitar a dimensão da falta,introduzida pelo objeto ausente. Entretanto,é sabido que esse amor jamais se realizou. Entre o que sustenta a causa do desejo e a ética cristã que impõe a renuncia a ele, em nome do amor, Dante escolheu a esta. O autor se pergunta se esta não é sua maneira de manter-se como erastes,como desejante,, afastando o objeto que sustenta o seu desejo. Todo o texto da Divina Comédia poderia ser,então,o esforço para desprender-se do objeto ao qual Dante estava aprisionado,desde a sua infância. Percurso que culminaria então em um luto? Seria esta uma via válida para por em questão o valor do conceito de sublimação? É uma pergunta.
Mas no mesmo texto,o autor conclui que “não é o que propomos. Propomos não ceder em seu desejo, ética lacaniana que avança até um tempo em que o objeto cai”. “Em nossa perspectiva”,diz ele, “o amor se diz,o amor se escreve, o amor se faz,do que Dante se protege.” Escreve o amor,para não fazer o amor. E quando escrever o amor serve para proteger contra fazer o amor, descobre-se seu verdadeiro risco, sua verdade: o gozo do Outro não é signo de amor.
Se bastasse escrever sobre o amor, não leríamos compungidos a história trágica de tantos poetas. Se escrever sobre o amor bastasse, letra ou música; se bastasse a criação, não teríamos perdido para a morte aos vinte e sete, Jim Morrison, Jimi Hendrix, Janis Joplin, Brian Jones, Amy Winehouse, entre outros. Já há algum tempo venho me ocupando de tentar dar corpo, por assim dizer, e voz, ao real dessas mortes que nos deixam sem palavras. Embora ainda esteja longe de conclui-lo, o que este trabalho já me ensinou foi a olhar com cautela para as relações simplistas entre um suposto fim de análise e criação. Não é em qualquer invenção que podemos reconhecer a garantia do real como impossível enquanto sancionando o risco do ato, autorizando-o e mesmo prescrevendo-o, como se espera de uma de análise.
O que testemunhamos, no caso de muitos dos nossos pacientes, assim como se deu na história desses poetas e músicos cuja perda precoce sempre lamentaremos,é uma vida pontuada pela emergência do acting out ou, eventualmente, das passagens ao ato. O que nos autoriza a propor que é da inibição que se trata. Justamente porque a inibição joga entre o amordaçamento, a paralisia do ato nenhum, e o acting out como tentativa de sair dela. O recurso à droga se revela como um típico exemplo dessas atuações, mas não é o único, claro. Para mim, no momento atual perguntar-me sobre o que uma análise poderia propiciar é indissociável da questão sobre o que pode fazer obstáculo a que se possa esperar dela seja o que for.
Há alguns anos publicou-se um livro com a contribuição de diferentes analistas sobre a funçao da análise dita de controle. Não há de ser por nada que em quase todos, independentemete de que o controle seja prescrito ou não como rotina, o momento em que ele se imporia,e os motivos pelos quais isto pode se dar,são ilustrados por situações clínicas em que a dificuldade está em transpor a inibição, ou na irrupção do acting out. Por alguma razão elegem esses impasses como potencialmente mais nefastos quanto à função do desejo do analista, à produção do ato analítico e,logo, quanto ao que pode fazer obstáculo a que se possa esperar dessas análises o que se supõe que devam propiciar.
De um modo geral,o que se lê ali é que é a inibição, o poder que é preciso perturbar para permitir a eficácia do ato analítico,porque ela se opõe ao ato,como núcleo residual do gozo como tampão,referido ao objeto mais inercial da gramática do fantasma. No Seminário RSI, Lacan nos apresenta três nominações, a partir de uma articulação entre o nó borromeu e os três termos de Freud. Tratar-se-ia não do nó planificado, mas do enodamento dos três semiplanos, o que permite representar a abertura ao infinito de cada consistência, criando-se no campo assim projetado os cantos da inibição, do sintoma e da angústia. O da inibição fica definido como intrusão no simbólico do que parte do imaginário.
Ao introduzir esse quarto anel do Nome-do-Pai que, enlaçado à cadeia borromeana faz falso buraco, conforme se solidarize com um dos três, Lacan diria que a inibição está ligada à nominação imaginária. No esquema a quatro simplificado, podemos ver como esse quarto nó nunca se enlaça diretamente ao elo que duplica, de modo que na nominação
imaginária ele surge como sendo aquele que faz a ligação entre o Real e o Simbólico.
Assim podemos compreender que apesar da inibição ser do campo do imaginariamente simbólico, portanto concernente ao que do imaginário se desloca para o simbólico, impondo a ele a tal “Geometria Angélica” mencionada no Seminário XXIV, que desconhece a falta e a diferença, ao mesmo tempo ela põe em jogo a interseção do Imaginário com o Real. O que levaria Lacan a dizer, na lição de 9 de maio de 1978, do Momento de Concluir: “O que é a inibição? O real faz com que giremos em círculo, escapa-nos e é seguramente devido a isso que a inibição se produz na hiância entre o imaginário e o real”. Portanto, pondo em jogo o gozo do Outro.
Gozo do Outro que é estruturalmente impossível: entretanto, esta impossibilidade mesma, requer para se fazer reconhecer, e operar, a letra, o corte referente ao (–φ). Habitualmente a iminência desse gozo deveria ser barrada pelo próprio sinal de angústia. Mas nas condições estabelecidas na nominação imaginária, assim como se testemunha em certos lutos impossíveis, o “oco letrado de (–φ)” parece encoberto. Nesses casos, ao invés de se assegurar a saída que seria necessariamente anunciada pela angústia, o sujeito seria induzido a calar-se diante desse gozo intocável.
A conjectura é de que um possível enlace entre a inibição e um sedimento masoquista opere como obstáculo à eficácia do ato analítico. Como diz Cristina Marrone, o masoquismo se infiltra no fantasma pela alienação, união do sujeito com o objeto a, contaminando o fantasma de uma condição derivada desse a pré-subetivo, que lembra,
frequentemente sem palavras, o engendramento do Outro,o que constituiu a “união de corpo e gozo” à qual Lacan se refere no Seminário Les non-dupes errent. Sendo que o “lembrar sem palavras” é o que ele chama de mostração,ou “monstração”, quando no seminário sobre a angústia situa o acting out.
Uma condição dessas determinaria uma “aglutinação máxima”, impossibiitando o corte no sentido, e o ato. Masoquismo e inibição reunidos sob o estatuto do ‘objeto posto no museu”, sujeito padecente de um corpo que pendula entre a paralisia e a precipitação no acting. Conjunção perigosa para a posição do analista, diante da qual o recurso a uma vacilação calculada comporta riscos em ambos os polos.
O analista, além de cuidar de abster-se do poder outorgado pela transferência, de trabalhar por sua própria destituição do lugar que ocupa, fá-lo-ia contra o empuxo de um ecxcesso potencialmente capaz de absorvê-lo em sua posição de objeto, pois se na inibição o real faz com que giremos em círculos, a contribuição do masoquismo não é desprezível, se levarmos em conta o que diz Lacan no seminário XXIII,sobre o masoquismo ser o maior gozo que dá o real.
Ao propor o sinthome, o quarto aro, como parte da estrutura, Lacan indica que há algo na estrutura que falha e que só se resolve no real. Que para um analista pode ser sua própria prática. E para Isidoro Vegh, a falha na estrutura do analista,insolúvel em qualquer análise pela via do simbólico, só é remediável se, além do que pode fazer com seu gozo parasitário a partir de uma perspectiva simbólica, resolve-se a processá-lo numa articulação viável no real. E segundo ele, “ pode ser para o pior, quando se dá o exercício de um gozo perverso, seja sofrendo-o como inibição,ou exercendo-o nos seus analisantes, ou ainda,pode ser uma oportunidade para o melhor,se enlaça seu gozo parasitário à criação”.
Não é sem perigos portanto, essa passagem, na transferência! Ai se joga, para o analista, a sua própria análise. Como andam suas contas com a pretendida identificação ao sinthome e se ele tem dívidas a saldar com o “saber fazer ali” com seu sintoma. E para o analisante, antes que ele possa dar sua senha para sair, resta o seu próprio ajuste com o real.
Real do qual Lacan diz que foi, efetivamente, o final do seu ensino. Morada do gozo, o real é sem lei e sem ordem. A partir da releitura de Joyce,podemos pensar em um real da linguagem. Sempre ali,mas talvez impensável antes que Lacan o recolhesse em pedaços, na escrita joyceana, como via para se pensar sobre o modo como esse real da linguagem influi no corpo. A liguagem, então, “é corpo sutil, é matéria”. Tem efeitos diretamente no corpo. Ela se corporiza,como diz Harari, ao pinçar,numa aula do seminário RSI, o termo que Lacan introduz, “ pathema”, referindo-se à paixão do corpo pelo efeito da linguagem. O sujeito pensado como pathemático.
O termo paixão, entre outras coisas quer dizer padecimento, sofrimento, como na tradição religiosa se diz da paixão de Cristo,que não por nada,se bem me lembro,comporta as estações gozosas. Aqui, paixão do corpo pelo efeito da linguagem, põe em jogo o padecimento de cada um. O sufixo thema, unidade mínima de pathos, ou pathei. Existiria então, uma medida para o modo como cada um padece no seu corpo desse efeito? O efeito do modo como lalíngua açoita o corpo para que, em sendo perdido se construa. O efeito do modo como o trânsito do gozo letreia o corpo, marcando-o para o mal,ou para o pior…
Para Harari, a importância dessa noção, é lembrar que o gozo não é apenas o gozo podre. Que a partir dele aparece algo como uma possibilidade de reagir. Mas para isso,o sujeito tem que passar por seu padecimento. “Essa idéia do pathema é contemporânea da introdução do sinthome,e dos desenvolvimentos de Lacan sobre Joyce, de quem ele toma a quebradura das palavras e do padecimento. “Que são também”, palavras de Harari, “pedaços do que implica a maneira como um sujeito foi falado por sua mãe…Isso é a língua materna. E as marcas da língua materna não são,nesse sentido,marcas simbólicas. São marcas reais, no corpo, onde aparece nossa maeira de falar, a entonação, o ritmo, as cadências, tudo que implica ir muito além do texto da linguagem, metafórico, metonímico, retórico.”
Senão, a análise tem realmente a chance de se reduzir ao nhã nhã nhã interminável das novelas familiares, que expõe o analista não advertido ao sempre paralisante “ saber eu sei, mas o que é que eu faço?” Tornando o queixume da impotência do saber um abismo intransponível que separa o sujeito do advento libertador do real como impossível.
Trata-se, no meu entender, de levar às últimas consequências o que significa fazer uma clínica do real. É o que torna possível fazer frente ao empuxo e às flutuações da transferência, no encontro diário que ai se atualiza com o fantasma do analisante. È o que nos autoriza a nos meter com os perigos que se desdobram quando uma configuração mortificante se apresenta, como as que mencionei há pouco, relacionadas às inibições graves, ao sofrimento masoquista que desborda os limites da neurose e às atuações que o corpo padece nesses casos. Eu penso que elas são o osso que Lacan nos deixou. Cabe a nós decidir se o sofreremos atravessado na
garganta, se vamos roê-lo, ou se vamos entalhar nele as nossas próprias marcas.
Enfim,se vamos à análise para trocar de gozo,desejo partilhar aqui um fragmento das minhas próprias lembranças. Fui iniciada no estudo do piano muito cedo, aos cinco anos. O que não fez de mim uma pianista,mas certamente o meu gosto pelo rock pesado foi precedido de uma preferência pelos compositores que me pareciam mais barulhentos. Stravinsky, Rimsky Korsakov, Beethoven, Wagner. Sempre gostei de Wagner e suas óperas grandiosas e dramáticas. Dentre elas, a mais comovente, Tristão e Isolda. Sua história,aliás, tem me merecido mais atenção do que as tragédias de Shakspeare,tão ao gosto dos nossos mestres.Há um movimento, particularmente belo,que conta a morte de Isolda. Antigamente, ouvia isso e chorava. Quando se é muito jovem, há sempre uma Isolda enlouquecida, prestes a morrer de amor dentro a gente. Cada vez que a escutava abria em mim uma ferida de amor que ainda não tinha. Hoje,escuto e apenas me deixo atravessar pela música. Descobri que não era desespero aquilo de que ela nos afeta. É gozo. Pode-se gozá-lo. Mas não é preciso sofrê-lo.
Há pouco falava da identificação ao sinthome na passagem a analista. O que é o mesmo que dizer como fim de análise,se é que ele existe mesmo. A esta se junta essa outra formulação acrescentada por Lacan nos anos finais do seu ensino, o “saber fazer ali com”. Com o que fez o sintoma,fazer o novo. Para o que ambas apontam, e nisto me parece que são geniais,é o fazer. Porque se algo, realmente o sujeito tem o direito de esperar de uma análise, sem fórmulas nem gráficos, sem matemas nem patemas, é o levantamento da inibição e a propiciação do ato.
Está ai, creio, aquela margem de liberdade a que Lacan se referia como resultado legítimo de uma análise. Em Harari encontramos que, se a passagem da miséria neurótica para a infelicidade comum conduz a “saber fazer ali com”, então quer dizer que ali caiu um ideal. Caiu o “ou faço tudo, coisas grandiosas, ou não faço nada”.
Aprendemos que aquela tradução dos dois termos que em alemão designam as duas coisas que,segundo Freud a análise libera, como “ amar e trabalhar” foi um equívoco. Que “genuss” e “leistung”,se traduzem melhor por “gozar” e “produzir”. Então,”se tudo andou bem”,como dizia lacan, uma análise deve liberar a capaciade de gozo. Não do gozo sofredor,mas do gozo a que fizemos jus pela renúncia à ilusão de um paraíso inexistente. E a capacidade de produzir. Produzir é fazer com. Tomar algo e sobre ele operar uma transformação. Seja inventar, criar, não importa. Produzir. Gozar e produzir. Não serve só gozar. Nem serve só criar, no lugar de gozar, ou para não gozar.
Lembrando o que já foi dito,” o amor se diz, o amor se escreve, o amor se faz”. Só falar e não fazer amor, escrever o amor, para não fazê-lo, é muito pouco para chamar de vida.
A frase que usei como epígrafe é do livro “Uma Temporada Com Lacan”, de Pierre Rey. Trata-se do relato de sua análise com Lacan. Ele não é psicanalista. Ainda bem. Não o escreveu para corrigir o revés do destino de um passe frustrado, ou para fazer de todos nós seus passadores incidentais. Nem para reivindicar autoria de conceitos ou se fazer justiça. Ele o escreveu porque é escritor. Foi isso que sua análise lhe permitiu fazer com, ao libertá-lo de uma paralisia mortífera que o incapacitava a escrever, das fobias, do álcool, da miséria e, sobretudo da inibição.
Separei algumas passagens que considero preciosas: “ com Lacan aprendi a nomear as coisas. Se não tinha mais medo das palavras, como poderia temer as coisas?”.” Não gostava mais das mesmas coisas de antes e, estranhamente, como as pessoas me davam menos medo, conhecer-me melhor tornara-me mais curioso em relação aos outros, mais aberto, mais indulgente para com a tolice”. “ A felicidade nunca fez ninguém feliz”. “ ao contrário,desntocado o desejo pode fazer estragos”. E, finalmente, “apaixonado pelas virtudes do excesso, cultivo, para o bem e para o mal, o desequilibrio,sabendo muito bem que o meio termo não se encontra no centro,mais ao lado,na margem, ali onde, como nada está escrito, cada um pode,se desejar e sa puder, inscrever, na língua de seu desejo, o que lhe agrada da sua história.”
Mas a que me apreceu mais soberba, é uma passagem em que, brincando com a pergunta sobre qual seria o momento ideal para iniciar uma análise, ele produz aquela que poderia ser a melhor das respostas para a pergunta que nos reúne aqui hoje : “Mais tarde é quando? Mais tarde é sempre imediatamente…. Só a perspectiva de morrer menos idiota já deveria fazer tábula rasa de qualquer hesitação.”
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Referências Bibliográficas:
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por: Angela Valore