Cínica psicanalítica e ambulatório de saúde mental

Cínica psicanalítica e ambulatório de saúde mental


Trabalho apresentado na IV Jornada de Saúde Mental e Psicanálise na PUCPR em 21/11/2009.

A prática da psicanálise em ambulatório de saúde mental pode suscitar no psicanalista uma série de questões. Algumas questões são semelhantes àquelas que o psicanalista formula na clínica realizada em consultório. No entanto, existem outros questionamentos mais específicos, quando a prática psicanalítica é realizada no campo da área chamada de saúde mental.
Assim, o que pretendo neste trabalho, mais do que um debate sobre os impasses técnicos, é destacar algumas das questões da clínica psicanalítica em ambulatório, relacionadas mais especificamente à dimensão ética da psicanálise no confronto do psicanalista com a saúde mental.
Uma das inevitáveis questões e, talvez, a primeira que surge para o psicanalista em ambulatório de saúde mental, se refere justamente a este termo “saúde mental”. À que se refere este termo? O que é saúde mental?
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), não existe uma definição oficial de saúde mental. No entanto, ela admite que, saúde mental é um equilíbrio emocional entre o patrimônio interno e as exigências ou vivências externas.
Por esta definição, que é desenvolvida a partir da perspectiva da saúde, a saúde mental seria alcançar um estado de equilíbrio, uma espécie de harmonia para o homem. Derivada da definição de saúde, a saúde mental seria um estado de harmonia, de equilíbrio, de bem-estar bio-psico-sócio-espiritual como refere a OMS.
Além desta definição teórica, é observável no cotidiano de ambulatórios de saúde mental, os efeitos desta noção. Nota-se que os profissionais da saúde mental operam a partir desta definição de saúde entendida como equilíbrio, harmonia, bem-estar. A prática dos profissionais de saúde gira em torno do discurso do bem-estar. O funcionamento dos serviços de saúde mental se apóia na tentativa de proporcionar ou ajudar os pacientes a alcançarem tal harmonia, equilíbrio. Nesta lógica, os recursos terapêuticos são utilizados visando a eliminação dos conflitos que possam causar mal-estar.
Aqui, já podemos pensar sobre um dos impasses para o psicanalista, considerando que a psicanálise não procura conduzir a um bem-estar. Basta lembrar que desde o início de sua obra, Freud (1895/1987) já considerava que a psicanálise encaminhava o homem para outra direção que não seria a exclusão total de conflitos.
Nos estudos sobre a histeria, ele já afirmava que a paciente teria muito a ganhar se conseguisse transformar seu “sofrimento histérico numa infelicidade comum” (p.294).
Lacan(1959/1991) em seu seminário sobre a ética da psicanálise, ao pensar a inexistência de um bem que orientasse o homem na sua relação com o mundo, retoma uma fala freudiana do texto mal-estar na civilização que diz que a cultura pede demais ao sujeito. “Se há algo que se chama seu bem e sua felicidade, não há nada para isso ser esperado nem do microcosmo, isto é, dele mesmo, nem do macrocosmo” (1959/1991, p.47).
Portanto, muito mais do que uma diferença de manejo no tratamento, antes disso, há entre a psicanálise e os serviços de saúde mental uma diferença de concepção da relação do homem com o mundo.
Além desta diferença, existe outro impasse que o psicanalista encontra no contexto da saúde mental e que, desta vez, é causado pelas características da cultura da modernidade.
Nos dias atuais, somos cotidianamente bombardeados pela oferta de uma infindável série de objetos que prometem um suposto bem-estar pleno, absoluto.
Além da propagação de objetos que supostamente trariam um bem-estar, usando “os avanços” obtidos pelo advento da informática, os meios de comunicação fazem propaganda de objetos que prometem trazer uma satisfação total e rápida, imediata.
Os “avanços tecnológicos”, dentre outras conseqüências, mudou a relação do homem com o tempo. Atualmente, quando alguém vai comprar um aparelho eletrônico, seja um celular, um microcomputador, um microondas, uma microcâmera, etc., além de ser micro, tem que ser “fast”, deve funcionar numa velocidade rápida.
O homem moderno não gosta de esperar. O computador que ontem foi vendido como sendo um dos mais rápidos, amanhã já não é o mais veloz. A relação do homem na atualidade é regida pela lógica do comodismo e de um imediatismo. Se trouxer comodidade, bem-estar rápido, tem valor. Se for demorar, perde sua importância. Vivemos dias em que “o complexo”, “o complicado”, é entendido como ineficaz. Tudo tem que ser da ordem do imediato, instantâneo e simples.
A relação entre estas características da modernidade e a sintomatologia apresentada na clínica é um tema que tem sido bastante debatido pelos psicanalistas. Mas, neste trabalho, se destaca alguns dos aspectos da cultura atual com a intenção de colocar em discussão as questões relativas à diferença entre a concepção de saúde e a ética da psicanálise.
É interessante observar nesta lógica do consumismo, como o suposto bem-estar que já é oferecido pela saúde, torna-se ainda mais perseguido no contexto da
modernidade. A saúde, a saúde mental, se transformou num alvo a ser atingido passando a ser buscada como mais um objeto a ser conquistado para trazer satisfação. Com o acréscimo da demanda colocada pela modernidade, o suposto bem-estar oferecido pela concepção de saúde, passa a ser perseguido pelos pacientes como um objeto.
Assim, é notável na clínica ambulatorial, que a demanda de um considerável número de candidatos a pacientes gira em torno desta busca do objeto saúde. Tal demanda, aparece na forma de requerimento de avaliações sobre a saúde, solicitações de psicodiagnósticos, pedidos de eliminação de sintomas, podendo chegar, às vezes, a pedidos de atestado sobre a saúde para afastamento do trabalho. São poucos aqueles que procuram os serviços ambulatoriais expressando vontade de fazer tratamento e, menos freqüente, aqueles que chegam se interrogando sobre os seus sintomas. A maioria chega reivindicando bem-estar. Poucos, se questionando sobre as possíveis fontes de seu mal-estar.
Considerando então, este contexto onde o ambulatório de saúde mental está inserido, é possível realizar um trabalho psicanalítico que não subverta a sua ética?
Em seu seminário sobre a relação de objeto, Lacan retoma a noção freudiana de objeto para afirmar que a relação sujeito-objeto não está em primeiro plano para a psicanálise, ou seja, que a relação sujeito-objeto não é central na experiência analítica.
Então, a partir do seu retorno a Freud, fundamenta a idéia de que a relação do sujeito ao objeto não é direta e acrescenta que há uma distância nesta relação que vai causar tensão em toda busca do objeto tornando conflituosa a relação do homem com o mundo.
Assim, Lacan(1956/1995) desenvolve a noção da falta do objeto como sendo central na psicanálise, dizendo que ela é um dos pontos mais importantes da experiência analítica.
Além disso, ao abordar a dimensão trágica da experiência psicanalítica, Lacan(1959/1991) no seminário sobre a ética da psicanálise, afirma que o psicanalista não pode responder à demanda de felicidade apresentada pelos pacientes pelo simples motivo de que ela pressupõe a existência de um bem supremo e, do ponto de vista psicanalítico, o bem supremo não existe.
Então, quanto à questão colocada anteriormente sobre a possibilidade de um trabalho psicanalítico em ambulatório que não subverta sua ética, pode-se afirmar que é somente através da ética da psicanálise, considerada no seu rigor, que se torna possível praticar a psicanálise no atual contexto ambulatorial. Muito mais do que seu
aspecto teórico ou técnico, o que viabiliza e determina a possibilidade da ação da psicanálise em ambulatório, é a sua ética.
Quando o psicanalista é recebido para trabalhar clinicamente dentro do sistema de saúde, na maioria das vezes, o psicanalista é convocado a ocupar o lugar de um terapeuta e se espera dele um trabalho que vise à saúde. Contudo, o psicanalista não é um profissional da saúde.
A importância da ação do psicanalista no campo da saúde mental é outra. Considerando que o psicanalista sabe que não existe um Bem Supremo, sua ação não visa o bem-estar e, portanto, não compartilha da prática de oferecer nem a saúde, nem outro objeto qualquer.
Como foi citado anteriormente, nos ambulatórios de saúde mental, existe um predomínio no discurso dos pacientes, de uma busca da saúde enquanto objeto. Então, ao invés de reproduzir a posição dos profissionais da saúde, não caberia ao psicanalista, a partir da ética da psicanálise, interrogar os motivos da predominância desta demanda de saúde que é apresentada pela maioria das pessoas que procuram os ambulatórios?
Para refletir sobre esta questão vale retomar uma expressão utilizada por Lacan (1958/1998), quando ele investiga o tema da Direção do Tratamento, e diz: “Consegui, em suma, aquilo que se gostaria, no campo do comércio comum, de poder realizar com a mesma facilidade: com a oferta, criei a demanda”(p.623).
Não seria esta uma explicação para a questão colocada acima? A oferta que se propaga sobre as possibilidades de se alcançar a saúde mental enquanto equilíbrio, harmonia, seria exatamente o que cria a demanda dos pacientes de buscar tal saúde, tal harmonia?
Pensando assim, a demanda de alguns pacientes sobre a obtenção da saúde enquanto objeto plenamente satisfatório seria criada pela oferta do próprio sistema de saúde mental?
É possível considerar que, em parte, tal demanda é alimentada pelos profissionais e Instituições da saúde mental. Contudo, tão importante, é questionar a participação dos próprios pacientes na implicação com determinada demanda.
Aqui se destaca mais uma ação do trabalho psicanalítico no campo da saúde mental. Interrogar cada sujeito sobre o seu posicionamento diante destas demandas do sistema de saúde mental, pois lembrando uma das formas que Lacan destacou no seminário 4 sobre as noções de objeto é que “o sujeito se faz de objeto para o outro” (Lacan, 1956/1995, pp. 12-13). Não seria este o caso daqueles pacientes que ocupam o lugar de objeto da demanda apresentada pelo sistema de saúde mental?
Sabendo da impossibilidade de um bem total à humanidade, o psicanalista pode acolher e interrogar a demanda moderna que reivindica objetos plenamente satisfatórios, bastante presente no discurso dos pacientes em ambulatório e que aparece sobreposta à demanda de bem-estar, de saúde, apostando no surgimento do sujeito.
Portanto, esta seria uma das possibilidades da ação da psicanálise que, a partir da sua ética, considerando-a de forma rigorosa, pode acolher a falta de harmonia, a falta de equilíbrio, a falta de “saúde mental” de cada sujeito que acaba sendo foracluido pelo discurso da saúde. A ação da psicanálise no campo da saúde mental pode ser exatamente o acolhimento daquilo que é excluído pelo sistema de saúde mental e apostar no surgimento do sujeito que aparece na clínica ambulatorial, capturado pelo discurso da modernidade ou anulado enquanto objeto da saúde.

GLEDSON M. B. DOS SANTOS

REFERÊNCIAS
Freud, S. (1987). A psicoterapia da histeria. (V. Ribeiro, Trad.). Edição standard brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. (Vol. 2, 2a ed., pp. 251-294). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em 1895).
Lacan, J. (1991). O Seminário – A ética da psicanálise (Livro 7, 2a ed.). (A. Quinet, Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Obra original publicada em 1959).
Lacan, J. (1995). O Seminário – A relação de objeto (Livro 4, 1a ed.). (D. D. Estrada, Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Obra original publicada em 1956).
Lacan, J. (1998). A direção do tratamento e os princípios de seu poder. (V. Ribeiro, Trad.). Escritos: Jacques Lacan (pp. 591-652). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicada em 1958).

por: Gledson M. B. dos Santos