A presença do analista e o manejo da transferência nas psicoses

A presença do analista e o manejo da transferência nas psicoses

Trabalho apresentado na Biblioteca Freudiana de Curitiba em dezembro de 2007.

Desde as minhas primeiras experiências clínicas, eu já me questionava sobre a forma como os psicóticos entram em relação com o outro e, inclusive, o outro que quer escutá-lo em tratamento.
Intrigado e buscando entender, a apresentação dos fenômenos psíquicos como a passagem ao ato, as alucinações verbais e as criações delirantes que os pacientes produziam, comecei a notar que não era em qualquer momento e nem diante de qualquer pessoa que havia desencadeamento das crises, do mesmo jeito que observei que não era qualquer intervenção que ajudava os pacientes a se reestruturarem em suas crises.
Assim, neste trabalho de escuta dos psicóticos, fui trilhando os primeiros passos no trabalho na clínica e comecei a descobrir, que é no campo transferencial, onde se localiza um dos fatores que pode fazer diferença nas intervenções durante o tratamento dos pacientes, sendo eles psicóticos ou não.
Quem trabalha com as psicoses sabe que o tratamento destes sujeitos nos coloca cotidianamente diante de questionamentos sobre a nossa prática profissional, reabrindo questões sobre os aspectos básicos da clínica psicanalítica.
Com questões constituídas a partir do trabalho com as psicoses, encontrei neste cartel um espaço para entender um pouco melhor a transferência. Sem abandonar as questões que marcaram precocemente a minha atividade profissional, me debrucei sobre o tema da transferência para verificar a aplicação deste conceito no campo das psicoses.
Em cartel, então, retomamos a leitura de textos de FREUD e LACAN sobre definições, conceitos, função e estrutura da transferência. Nesta caminhada constatamos que da mesma forma que aconteceu com outros temas fundamentais da psicanálise, a transferência também passou por várias transformações conceituais e de definição.
Encontra-se nas publicações pré-psicanalíticas, mais precisamente em 1888, a primeira vez em que FREUD utilizou o termo transferência quando estudava a “Histeria”(1987, p. 82, v. I). Naquele momento, o termo referia-se a passagem, a transferência, de energia de uma para outra parte do corpo na histérica.
Após 24 anos, no texto sobre “A dinâmica da transferência”, FREUD já se referia à transferência como sendo aquilo que possibilitava a aproximação ou causava o afastamento entre as pessoas nas relações sociais. Segundo ele, a transferência era um fenômeno natural nas relações humanas e, portanto, já não era considerado um patrimônio da psicanálise.
Mais do que afirmar que a transferência é um fenômeno da vida cotidiana, em 1912, FREUD já reservava à transferência um lugar fundamental dentro de um tratamento psicanalítico. Dizia ele que a transferência é o “veículo de cura e condição de sucesso” (1987, p. 135, v. XII) para o tratamento.
LACAN, no seminário VIII, intitulado de A Transferência, localiza tal fenômeno, assim como nas últimas definições de Freud, no núcleo da experiência analítica. A leitura deste seminário mostra que desde aquela época, em 1961, LACAN já reforçava que a transferência está fortemente ligada ao campo da fala e ao campo do Outro. Diz ele: “(...) parece-me impossível eliminar do fenômeno da transferência o fato de que ela se manifesta na relação com alguém a quem se fala.”(1987, p. 177).
Continuando seu ensino, em 1964, LACAN no seminário sobre “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”, define repetidamente a transferência como sendo “a atualização do inconsciente” (1990, p. 139).
Considerando tais definições elaboradas por Freud e Lacan, quero levantar a inquietante questão: O que seria a transferência nas psicoses? Como manejá-la?
Tentando fornecer alguns elementos que ilustram e apontam para estas questões, quero recorrer a um fragmento de um caso clínico.
Antes, entretanto, quero ressaltar que o recorte do caso não comporta a riqueza de todo o seu conteúdo, nem esgota todas as questões suscitadas pela psicose. O caso citado serve apenas como um recurso, utilizado na tentativa de construir uma melhor compreensão na questão sobre a existência da transferência no campo das psicoses.
Trata-se do caso de um paciente que esteve internado em um hospital psiquiátrico onde estava, na época, asilado há cerca de 8 anos e que por várias circunstâncias, mesmo dentro do hospital, acabava fazendo crises. Psicótico, esquizofrênico, com cerca de 2 metros de altura, forte e, às vezes, violento, ele fazia crises onde era necessário uma equipe de profissionais para contê-lo fisicamente, tendo que segurá-lo para levá-lo em contenção em uma enfermaria. No entanto, era marcante que, em algumas situações, a presença de uma determinada auxiliar de enfermagem diminuía sua agitação física, embora ele mantivesse alguma inquietação, mas a presença dela era suficiente para dispensar a contenção física. Assim, com a presença da auxiliar de enfermagem ele tornava-se mais controlado e, na medida em que ele ia falando com ela, ele tornava-se mais calmo.
Também é importante citar que o paciente do caso saiu do hospital há pouco mais de 4 anos e desde a sua saída, mora e convive com outros 6 ex-pacientes psiquiátricos (homens e mulheres) em uma residência terapêutica (casa no meio da comunidade). Após sua saída passou por um único internamento.
Antes de retomar a questão do que seria a transferência nas psicoses, é valido retirar alguns dos elementos do caso que parecem significativos para fundamentar a reflexão proposta.
O primeiro ponto é a diferença bem marcante que existia entre as crises que evoluíam para a agressividade física e as crises em que isto não ocorria. O que estabelecia tal diferença?
A distinção no curso das crises era tão notável que a auxiliar de enfermagem era questionada pelos próprios colegas de trabalho que se interrogavam para entender o que acontecia que na presença dela as crises do paciente tinham um desdobramento particular. A resposta da auxiliar de enfermagem era: “Mas eu não faço nada?!”.
No entanto, o relato do caso demonstra que o paciente sinalizava que havia diferença, já que ele tornava-se mais calmo na presença dela. Então vale reiterar a questão: se a equipe era composta por outros profissionais, porque ele ficava mais controlado especificamente com a presença dela?
Outro aspecto interessante de ser destacado é sobre o dito da auxiliar de enfermagem: “Mas eu não faço nada!?”. Qual o possível efeito deste dito e o que pensar sobre o manejo nas psicoses?
Ainda sobre o caso relatado, quero sublinhar um último elemento: o acolhimento da palavra do paciente. Era interessante que o paciente ia se acalmando enquanto ia falando com a auxiliar de enfermagem.
Antes de retomar a questão proposta sobre a transferência nas psicoses é essencial uma última ressalva.
Para refletir efetivamente sobre a transferência no campo das psicoses é fundamental o exercício de se despir do conceito enraizado no (pré)conceito de que a loucura é o contrário da normalidade. Muitas vezes, essa noção sobre a psicose contamina a clínica induzindo ao erro de se definir a psicose pela negatividade da neurose. Pois se pensarmos a transferência aos moldes do que se verifica nas neuroses, imediatamente excluímos o sujeito psicótico da clínica.
Conforme se verificou no caso citado o paciente encontrou na presença de uma determinada pessoa, uma espécie de âncora que evitava que ele descompensasse nos momentos de crise.
No Seminário XI, no capítulo sobre “o campo do outro e o retorno sobre a transferência” (1990, p. 191), LACAN estabelece uma topologia sobre a constituição do sujeito dizendo que o sujeito se constitui no campo do Outro. Seguindo um jogo de operações que Lacan denominou de alienação e separação, o ser vai se constituindo como sujeito. Assim, a psicanálise lacaniana localiza o psicótico como um sujeito condenado, alienado, no discurso do Outro considerando tais obstáculos que surgiram no seu processo de separação.
Ainda no seminário XI, LACAN utilizou o termo “presença do analista” (1990, p. 119) colocando o analista no campo de uma função, ampliando a sua presença para além da presença física, dizendo que se trata de uma presença simbólica que testemunha e garante a presentificação do inconsciente do paciente.
Entretanto, o psicótico por características da constituição da sua estrutura, está muito mais
ligado à presença concreta do objeto, pela falta estrutural de mecanismos para fazer uma simbolização da separação. É como se na ausência física do objeto, houvesse dificuldades para o psicótico continuar sabendo da existência do objeto. Assim, o psicótico vai carregar esta característica para o seu “relacionamento” com as pessoas, inclusive, o psicanalista. Portanto, parece que era por este motivo que primeiramente precisava da presença física da auxiliar. Mas porque precisava ser ela havendo outras pessoas da equipe?
Isto nos permite lembrar a afirmação de Freud de que “ o paciente por si próprio fará uma ligação e vinculará o médico a uma das imagos das pessoas por quem estava acostumado a ser tratado com afeição” (1987, p. 182, v. XII).
Mas, tentando entender melhor a particularidade do vínculo que se estabelecia entre o paciente e a auxiliar de enfermagem, podemos recorrer ao outro elemento em destaque que era a explicação da própria profissional.
Expressando uma espécie de surpresa quando os colegas questionavam o que acontecia, ela dizia: “ mas eu não faço nada!? ”. Embora o dito possa, primeiramente, passar uma impressão de passividade, pelo desdobramento das cenas do caso, entende-se que a posição de “não fazer nada” tinha um efeito no paciente e que talvez explicasse a particularidade do vínculo entre eles.
Ao “não fazer nada”, a auxiliar de enfermagem permitia que o paciente falasse. Neste enfoque, “eu não faço nada?!”, era semelhante a um silêncio que possibilitava a presença da palavra do paciente.
É evidente que a auxiliar de enfermagem não estava fazendo um silêncio analítico. Mas naqueles momentos ela sustentava uma função com características analíticas, acolhendo e suportando a expressão dos delírios do paciente permitindo que ele falasse. A auxiliar de enfermagem mostra aquilo que podemos considerar uma das formas de manejo analítico no trabalho com as psicoses; acolher e suportar a produção do paciente.
Portanto, parece que “não fazer nada” tinha este efeito de acolhimento que, inicialmente, pode ser sustentado por um silêncio. Tanto um silêncio no sentido de ausência de barulho, quanto o silêncio do seu sintoma. Num tratamento psicanalítico, o sintoma do analista deve estar em silêncio. Silêncio que articulado a técnica, ganha estatuto de uma função no manejo. Portanto, silêncio não significa ficar mudo. O silêncio possibilita a entrada da palavra, e daí surge a verdade do sujeito.
Outra análise possível do enunciado da auxiliar de enfermagem, é que ao dizer “mas eu não faço nada!?, expressava um testemunho da posição dela diante da castração.
Quem trabalha com psicoses deve lembrar que o discurso do analista é a única forma de se considerar o outro como sujeito. Ao contrário do que muitos possam imaginar, encarnar o significante mestre diante de um psicótico é a pior forma de tratá-lo.
Quando a auxiliar de enfermagem não conseguia explicar o que acontecia, ela dava provas de sua ignorância, de sua falta. Notem que ao dizer “Mas...”, expressa um reconhecimento sobre a diferença que a sua presença causava, “mas” não sabia explicar o porquê. Este é um saber que o paciente detinha. Parece que esta ignorância marcava a sua falta e que está em jogo a todo tempo num processo analítico. O manejo na clínica com as psicoses está diretamente relacionado com este aspecto de saber sobre a condução do tratamento que não é um saber sobre o paciente. É fundamental que o analista saiba localizar qual é a posição do sujeito diante da falta, para medir o peso da sua intervenção.
O último elemento destacado referiu-se sobre a presença da palavra do paciente.
Havendo nas psicoses uma falha estrutural na simbolização, é fundamental que o psicótico possa falar. É a inclusão da palavra que pode recuperar certa distância entre o sujeito e a passagem ao ato, garantindo a presença do simbólico através da verbalização. A palavra pode permitir que o psicótico articule o que é do real e do imaginário com o simbólico. É o uso da palavra na sua função organizadora. Basta abrir o livro de SCHEREBER (1982, Memórias de um doente dos nervos) para ver a importância da fala e seus fenômenos relacionados ao manejo das psicoses. Por mais perturbada que possa parecer, é através da fala que o sujeito vai tentar restabelecer o vínculo com o mundo.
O sujeito em tratamento no caso citado precisava, primeiramente, da presença física da auxiliar de enfermagem. Quando ela aparecia no campo de visão dele, já causava uma diferença. No entanto, tal importância não se resumia a presença física. Ela também exercia uma função que possibilitava a presença do simbólico. Ao tornar-se presente para ele, ela calava-se e permitia que ele falasse com ela.
Obviamente que uma função analítica não se restringe a ouvir, mas isto é mais uma das balizas no manejo da clínica com as psicoses. Suportar; permitir que o paciente fale.
À respeito deste ponto, LACAN no seminário 3, sobre as psicoses, especifica a estrutura da fala e levanta questões a respeito da fala perguntando: “será que o sujeito fala com vocês?” e “de que será que ele fala?” (1988, p. 52).
Assim, LACAN vai demarcando a distinção entre o outro e o grande outro, enfatizando que falar é fazer falar o grande outro como tal. Conforme seu ensino ele explica que o grande outro é o inconsciente e que esse inconsciente “é algo que fala no sujeito, além do sujeito, e mesmo quando o sujeito não o sabe, e diz sobre isso mais do que crê”(1988, p.52). Portanto, é o inconsciente que fala no sujeito. Ao se acolher a fala do psicótico, acolhe-se o inconsciente. Por isto que é imprescindível que se acolha a fala do paciente psicótico.
A afirmação de LACAN sobre a transferência como sendo “a atualização do inconsciente”(1990, p.139) nos permite pensar num primeiro momento, que na medida em que se acolhe a fala do psicótico, possibilita-se a transferência. Contudo, não podemos nos equivocar,
confundindo as produções delirantes com as manifestações do inconsciente. Sabe-se que as produções delirantes são respostas do sujeito psicótico diante da falta. O delírio é uma defesa, um efeito imaginário produzido pelo sujeito a partir da emergência da falta e assim, delírio não é uma manifestação do inconsciente. Portanto, não é porque se acolhe a fala do delirante que se estabelece uma transferência.
Porém, o acolhimento da fala, como vimos com Lacan, inclui um aspecto de reconhecimento. Mesmo que o delírio não seja uma manifestação do inconsciente, a produção delirante pressupõe a existência de um sujeito. Afirma LACAN, “ele fala com vocês de alguma coisa que lhe falhou”(1988, p. 52). Portanto, o delirante fala do trabalho de um sujeito; da existência de um sujeito.
Sabe-se que embora o ser do analista também possa ocupar um lugar na cena analítica, na clínica com a neurose o paciente está muito mais ligado com o saber que ele supõe no analista, do que com a pessoa do analista.
Neste ponto, sobre o saber, vale a citação de um psicanalista argentino, Carlos Horácio Bembibre, num dos seus seminários realizados na Biblioteca Freudiana de Curitiba, dizendo que parece que nos casos de psicose “a transferência parte do psicanalista” na medida em que ele supõe no psicótico um saber e que, portanto, existe a suposição de um sujeito que porta um saber e que isto seria a transferência nas psicoses.
Segundo a afirmação lacaniana “desde que haja em algum lugar o sujeito suposto saber (S.s.S), há transferência”(1990, p. 220). Desta forma, podemos considerar que enquanto se acolhe a fala de um psicótico, supondo a existência de um sujeito que porta um conhecimento, um saber, estamos estabelecendo uma transferência?
Considerando as idas e vindas pelos textos lidos, as discussões em cartel, o caso clínico citado e, principalmente, a consciência de que não há conclusões definitivas que encerrem a discussão sobre a transferência nas psicoses, quero fazer algumas considerações finais deste trabalho.
A ênfase que eu quis dar neste trabalho é sobre o que seria a transferência nas psicoses e quais as possibilidades de seu manejo.
Verificou-se que para falarmos em estabelecimento de transferência no tratamento das psicoses deve ser de uma forma radicalmente diferente do que acontece com o neurótico. Sabe-se que na neurose a transferência vai operar a partir da suposição de um saber no analista que vai através deste instrumento (transferência) implicar o sujeito no trabalho analítico. Nas psicoses, entretanto, o primeiro passo do trabalho está na aposta sobre a emergência de um sujeito e que a partir daí possa ser inscrita uma transferência, para que, num segundo momento possa haver alguma subjetivação. Quero dizer que, se é no campo do outro que o sujeito se constitui, quando o psicótico fala com o analista existe aí uma possibilidade de que o testemunho do analista possibilite ao sujeito alguma subjetivação
sobre o seu saber, sobre a significação que o paciente possa encontrar nas suas produções.
Quanto ao seu manejo, mesmo sabendo que na maioria das vezes o tratamento das psicoses exige mais do que uma estratégia, parece que uma possibilidade encontra-se em acompanhar o paciente na sua crise em busca pela metáfora de substituição, sendo, para isto, fundamental que se tenha pistas em que lugar o paciente o situa. Parece-me que foi neste sentido que Lacan advertiu em seu ensino que não se deve recuar diante das psicoses encontrando o analista no papel de secretário do paciente. Lembrando, finalmente, que é a presença do analista que pode garantir ao psicótico o seu lugar de sujeito. É somente o discurso analítico que preserva o lugar de sujeito ao paciente.
No caso citado, o paciente saiu do hospital e pelo que se tem notícias, conseguiu ficar estável se relacionando com outras pessoas com quem estabelece algum tipo de laço. Freud afirma que a transferência é um fenômeno natural nas relações humanas. O laço social seria outra possibilidade de estabelecimento de transferência nas psicoses?
Esta é uma outra interrogação que extrapola o que foi proposto neste trabalho e pretendo deixá-la para outra oportunidade.

Gledson M. B.dos Santos

REFERÊNCIAS
FREUD, S. A dinâmica da transferência. Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Obras Completas, v.XII).
_______ . Histeria. Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Obras Completas, v. I).
_______ . Sobre o início do tratamento (Novas recomendações sobre a técnica da Psicanálise I). Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Obras Completas, v. XII).
LACAN, J. O Seminário, Livro 3. As Psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1988.
_______ . O Seminário, Livro 8. A Transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1987.
_______ . O Seminário, Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1990.
SCHEREBER. D.P. Memórias de um doente dos nervos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1982.

por: Gledson M. B. dos Santos