Agiste conforme o seu gozo?

Agiste conforme o seu gozo?

Trabalho apresentado no Sábado da Letra em 02 de agosto de 2014.

Como já deve ser do conhecimento de todos, o evento de hoje, além de ser mais um momento de trabalho e, mais uma passo na direção do II Colóquio da Letra, hoje também é uma data comemorativo. Hoje também representa mais um ano, ou seja, o quinto ano de trabalho realizado pela nossa Instituição.
Mas, como também é de conhecimento, talvez não de todos, mas no campo psicanalítico, a psicanálise acaba exigindo de nós psicanalistas, um continuo processo de invenção. Deparamo-nos com essa lógica, inaugurada por Freud, a cada análise. Constatamos isso na prática clínica quando cada sujeito, em análise, retorna às suas origens, reiniciando assim a psicanálise. É assim em cada psicanálise. E, essa lógica que é intrínseca à própria psicanálise, também aparece na sua dimensão teórica. Ou seja, nós psicanalistas, acabamos constantemente submetendo a própria psicanálise aos questionamentos, fazendo recair sobre ela os seus próprios conceitos. Ao fazer assim, vamos elaborando, concluindo, avançando, nos reposicionando, mas, mais importante do que tudo isso, vamos dessa forma, reinventando, reconstruindo os fundamentos da psicanálise.
Esta lógica psicanalítica, que provoca e possibilita sua constante reinvenção, para mim, já representa uma das faces da ética da psicanálise que atualiza a todo tempo a castração.
O reinventar da psicanálise pode ser entendido como um dispositivo de criação, que a impulsiona operando num permanente vir a ser. É como se a cada momento de questionamento, se mantivesse a abertura que viabiliza a elaboração do que já foi formulado durante a sua história, mas, ao mesmo tempo, uma abertura que recolhe aquilo que retorna do que ainda não foi elaborado na cultura. E é aí que a psicanálise se reinventa. Reinventa-se a partir daquilo que sempre resta, que não cessa de não se inscrever e que, de algum jeito retorna.
Ora, não foi assim que a psicanálise surgiu? Quando Freud recolheu e acabou dando voz àquilo que, como disse Lacan, foi foracluído, pela ciência daquela época. Mas o que foi que Freud recolheu da época dele?
Para responder a tal pergunta, vale aqui resgatar, um breve fragmento da trajetória freudiana que possibilitou a inauguração da psicanálise: o encontro de Freud com aquilo que desafiava o saber científico da época, ou seja, o encontro com a histeria.
Sabe-se que naquela época, final do séc. XIX, os estigmas sobre a histeria já vinham sendo questionados por Charcot que entre 1870 e 1880, utilizando a técnica da hipnose sugestiva, explorava o estado sonambúlico dos histéricos e, desta forma, separou a histeria da loucura e dos estados de dissimulação.
Antes de Freud, foram Charcot e Pierre Janet que impulsionaram as primeiras teorias sobre a histeria. No início, Freud acompanhou tais teorias, mas não demorou muito para se afastar delas.
Discordando das hipóteses de Charcot, que buscava uma hereditariedade da histeria e também, gradativamente, divergindo das teorias de Breuer sobre as manifestações histéricas, Freud foi desenvolvendo as próprias teorias.
Ao deparar-se com os limites da técnica da hipnose, Freud começa a dar consistência à teoria que considerava os sintomas histéricos como sendo gerados a partir de representações psíquicas inconscientes. Assim, abandonando gradativamente a hipnose e desenvolvendo sua teoria sobre a causa das manifestações histéricas, Freud foi constituindo a sua concepção sobre o inconsciente. É desta forma que nasce a primeira teoria freudiana sobre o inconsciente e com ela surge a nossa psicanálise.
Desenvolvendo então, a teoria de que as manifestações histéricas eram causadas por representação psíquica inconsciente, Freud começa a considerar a ideia de que esta representação tinha conteúdo essencialmente sexual. Em seguida, descobre que a representação tornava-se intolerável na vida psíquica por sofrer a pressão daquilo que Freud nomeou como recalcamento e que, por sua vez, tentava manter isolada uma representação intolerável das outras representações psíquicas.
Tudo isto significa que, além de tirar a razão do centro da atividade psíquica, revelando que o homem é regido por forças que não são controladas pela consciência, Freud também descobriu que a principal fonte da formação das neuroses era um conflito entre a sexualidade e a cultura.
É claro que a teoria freudiana sobre “o papel desempenhado pela sexualidade na etiologia das neuroses” passou por um processo de evolução e, portanto, sofreu mudanças nesse processo, mas seguir todo o desenvolvimento do pensamento de Freud ultrapassaria o propósito deste trabalho. O que interessa destacar aqui, para o contexto deste trabalho, é que o surgimento da psicanálise ocorreu porque Freud também soube escutar as características da sua época, ou seja, para inventar a psicanálise, Freud serviu-se também de seu contexto cultural.
Assim, Freud nos deixou muitas lições e uma delas, então, foi a de que a psicanálise também deve considerar os acontecimentos culturais e sociais para compreender os conflitos de cada época. Como exemplo disso, temos o seu trabalho brilhante sobre o “mal-estar na Civilização”, onde Freud colabora na compreensão dos conflitos do seu tempo.
Portanto, considerando a importância dos eventos da cultura para a compreensão das manifestações da subjetividade de cada época, vamos considerar algumas das características do nosso tempo.
O mundo em que vivemos está cada vez mais diferente do mundo que antecedeu o advento da informática. Diferente em quais aspectos?
Com o passar das décadas, os avanços tecnológicos vem modificando, diariamente, as relações do homem com o espaço, com o tempo e com ele mesmo.
Com o fenômeno da Internet somado à globalização neoliberal as fronteiras foram se diluindo e provocando transformações na relação do homem com o mundo.
Desta forma, surgiu uma das particularidades do mundo contemporâneo que é a existência de um espaço chamado atualmente de “mundo virtual”.
Sabemos que esta mudança na relação do homem com o espaço não é nenhum privilégio da nossa época, pois a humanidade já enfrentou isso em outros tempos quando, por exemplo, o homem inventou o avião ou quando foi à lua pela primeira vez ou, enfim, outras invenções que também exigiram um redimensionamento do seu espaço.
No entanto, a criação do chamado “mundo virtual” causou mudanças mais radicais na relação do homem com o mundo. A virtualidade vinculada à Internet fez com que o homem tivesse que redimensionar a sua posição, tanto na extensão da atmosfera geográfica, quanto na dimensão subjetiva do seu espaço.
Em relação ao mundo externo, a invenção de diversos tipos de espaços virtuais permitiu que o homem colocasse em prática a experiência, anteriormente imaginária, de estar em vários lugares ao mesmo tempo. Por exemplo, está em reunião à distância com colegas de trabalho, se comunicando com um amigo que mora em outro país e, ao mesmo tempo, está mantendo contato com os filhos que estão em casa.
Com a criação dos espaços virtuais, a sensação de estar em vários lugares ao mesmo tempo, alimenta a ideia de um Eu que se estende e parece nunca acabar no espaço. Desta forma, também houve reformulação nos limites
entre o dentro e o fora, o interior e o exterior, o público e o privado, o singular e o coletivo, etc.
Sendo assim, este mundo virtual que é veiculado pela Internet, inevitavelmente, permite algumas reflexões sobre a subjetividade do homem contemporâneo. A forma como algumas pessoas estão se relacionando com a Internet é um fenômeno da atualidade que merece a nossa atenção, pois ele pode revelar alguns aspectos no mínimo instigantes.
É importante esclarecer que a questão aqui colocada sobre o mundo virtual, de forma nenhuma desconsidera a utilização do mundo virtual como um espaço que pode favorecer as invenções do sujeito. Não se trata aqui de menosprezar, nem desvalorizar o chamado mundo virtual, pois isso seria uma ingenuidade, já que além da sua esfera favorável para as criações, a virtualidade da Internet é um campo já instalado na nossa época e tentar resistir a ela seria como negar, ou até mesmo, re-negar, uma das peculiaridades do mundo contemporâneo. Portanto, não é uma conspiração contra o mundo virtual. O que se pretende abordar aqui é a relação do homem contemporâneo com esse mundo virtual veiculado pela Internet, enfocando a posição subjetiva que esta relação pode revelar.
Este tipo de relação com o mundo virtual é literalmente visível quando, por exemplo, temos notícias de pessoas que passam horas e mais horas em frente ao computador. Ou nas situações em que levam tombos nas ruas quando estão navegando pela internet e caminhando ao mesmo tempo. Algumas manchetes de jornais ilustram esse fenômeno quando anunciam cenas como: “Distraída ao celular, mulher cai em fonte d’água em shopping center”, “Homem distraído com celular cai na linha do metrô nos EUA”, “Mulher enviando SMS ao namorado cai no Canal de um rio”, “Homem se distrai ao celular e cai da plataforma de trem na Austrália”. Ou então, quando temos notícias de pessoas que procuram ajuda profissional para tratar a sua relação com o “mundo virtual”.
Que fenômeno é esse? É uma relação de objeto? É alienação? O que esse fenômeno pode revelar sobre a nossa cultura?
Do ponto de vista psicanalítico, a existência de uma dimensão virtual na relação do homem com o mundo não é nenhuma novidade.
Já sabemos, a partir da psicanálise, que não é a existência do objeto em si que gera conflitos na relação do homem com o mundo. Quando abordou “A relação de objeto”, Lacan retomou a noção freudiana de objeto para afirmar que a relação sujeito-objeto não é direta e que há uma distância nesta relação do homem com o mundo. Examinando a relação de objeto, Lacan coloca uma ênfase na dimensão da falta e não da existência do objeto. Portanto, do ponto de vista psicanalítico, a virtualidade da Internet, por si só, não seria um
problema, considerando esta noção de objeto da psicanálise que concebe a relação sujeito-objeto como uma relação originalmente desalinhada.
Da mesma forma, não podemos atribuir essa relação peculiar que algumas pessoas estão estabelecendo com o mundo virtual, à grande quantidade de objetos eletrônicos. Como sabemos, existe nos dias atuais, uma enorme quantidade de objetos que, via de regra, são objetos que trazem como ferramenta principal o acesso ao mundo virtual. Computadores, celulares, Iphones, Smarthphones, Tablets, Ipod, Iped, etc, são alguns dos objetos eletrônicos que são utilizados como via de acesso à dimensão virtual veiculada pela internet. São objetos cada vez menores e, do ponto de vista tecnológico, cada vez mais sofisticados.
No entanto, como vimos anteriormente, segundo a noção psicanalítica de objeto, a relação do homem com o mundo implica sempre uma dimensão de incompletude. Independente da quantidade de objetos, a relação que o homem estabelece com eles é sempre parcial. Portanto, a intensa quantidade de objetos e sua sofisticação não são fatores determinantes para que a relação das pessoas com a Internet seja uma relação tal qual estou descrevendo neste trabalho.
Porém, o que podemos constatar é que a própria Internet com sua virtualidade, acabou se tornando mais um destes objetos oferecidos para obtenção de satisfação. Seguindo uma lógica de mercado, ou seja, uma lógica sustentada na dialética do consumismo, o mundo virtual da Internet tornou-se um produto. Numa combinação entre o discurso das ciências tecnológicas que prometem supostos avanços na criação do “novo” aliados à lógica mercantil e consumista, a Internet e sua virtualidade tornaram-se um dos produtos mais atraentes do mercado.
No entanto, tratando-se desta combinação do mito de um objeto novo, neste caso objeto-internet e a lógica do consumo, existe uma grande ilusão que merece a nossa atenção.
Sabemos que o acesso à virtualidade da Internet ocorre a partir de objetos cada vez menores, mais potentes, mais acessíveis e tais características parecem aumentar a ilusão de que os objetos eletrônicos realmente seriam objetos completos, perfeitos. O que merece a nossa atenção aqui é o discurso que oferece estes objetos. Trata-se de um discurso que usa o avanço tecnológico do objeto como uma forma de tentar convencer e, portanto, iludir, que tais objetos devem ser consumidos. Ora, isso ocorrendo num tempo em que prevalece a lógica do consumo, é como se tais objetos eletrônicos fossem recobertos por mais uma camada que reforça o seu potencial de ilusão. Mas como eu mencionei, o que mais nos interessa aqui, é o discurso que oferece tais objetos. Este discurso que estimula o consumismo além de
aumentar a ilusão da existência de objetos completos, “avançados”, causa uma ilusão ainda pior.
Ao oferecer objetos de forma imperativa, tentando forçar todos a consumirem os mesmos objetos porque tais objetos seriam avançados, etc., a lógica capitalista de consumo subverte a relação sujeito-objeto. Além da ilusão de oferecer objeto que supostamente seriam perfeitos, a lógica do consumismo carrega implícita em si outra ilusão ainda mais nociva à existência do sujeito. E qual é essa ilusão? O engano de que exista um sujeito consumidor e um objeto que é consumido por ele. Essa é a ilusão mais perigosa! Diante do consumo forçado é o sujeito que acaba sendo radicalmente objetalizado, perdido e como se diz na linguagem da internet, o sujeito fica navegando.
Ora, sabemos que não são todas as pessoas que acabam se deixando reduzir a esse lugar de objeto-mercadoria diante do discurso capitalista que prevalece nos nossos dias.
Tratando–se aqui das questões ligadas ao fenômeno da Internet, existem pessoas, e não são poucas, que conseguem utilizar o espaço chamado de virtual como um espaço para sublimação. Conseguem criar e até reinventar-se a partir da sua relação com o objeto-Internet. Mesmo sendo um espaço virtual, ela é utilizada por muitos como uma ferramenta, um recurso, um meio para fazer laço-social. São pessoas que navegam pela internet, mas sem ser levados pelas correntes do consumismo desenfreado.
Portanto, o fenômeno que destaco neste trabalho, é o fenômeno da objetalização do sujeito na sua relação com a Internet. Então, por que algumas pessoas, ao se relacionarem com a internet, se colocam na posição subjetiva de objeto e seria essa posição uma espécie de condição para que exista aquele tipo de relação que destaquei anteriormente onde a pessoa fica conectada(usando um termo da Internet) de forma alienante?
Lacan, no seminário 4, relembrando às noções de objeto estabelecidas por Freud, diz que uma das formas que ele aborda o tema do objeto é que “o sujeito se faz de objeto para o outro”. Não seria esta a forma que algumas pessoas estão repetindo na relação com a Internet? Ocupando um lugar de objeto da demanda que o mundo capitalista apresenta. Pessoas que acabam ficando presas ao mundo virtual, sendo consumidas ou consumindo-se a si mesmas.
Em outro seminário, onde Lacan aborda a Angústia, afirma que “o verdadeiro objeto buscado pelo neurótico é uma demanda que ele quer que lhe seja feita”. De forma ampla, parece que na nossa época a demanda colocada pelo mundo contemporâneo segue o imperativo do consumo. Na lógica da alienação o sujeito internauta se destitui do seu lugar de sujeito e ocupa o lugar do objeto da demanda.
Sendo assim, entramos naquilo que foi definido por Lacan como o campo do gozo, elaboração lacaniana frente ao mal-estar na civilização formalizado por Freud.
A posição do homem contemporâneo que se relaciona com a Internet de forma alienante, objetalizado, é um meio de gozo. Uma forma de gozar.
Sendo assim, se podemos, portanto, tomar este fenômeno da alienação à internet como um fenômeno representativo dos nossos dias, ou seja, que representa uma característica da nossa época, como a psicanálise, quando é convocada na clínica, pode se posicionar frente a este fenômeno?
No início deste trabalho eu destaquei uma das peculiaridades da clínica psicanalítica que é não recuar frente aos impasses de cada época. Aprendemos isso com Freud. A psicanálise recolhe aquilo que retorna da cultura e, portanto, no mundo atual, parece que a posição objetalizada do homem contemporâneo diante deste mundo virtual veiculado pela internet trás uma característica da ética do nosso tempo.
Se na atualidade, por um lado existe esse processo continuo de objetalização do homem que, por sua vez, está se destituindo do seu lugar de sujeito, o que uma psicanálise pode colocar em questão é a responsabilidade de cada sujeito diante do seu gozo.
Seria esta a direção do tratamento psicanalítico nos dias de hoje? Questionar cada um que se implica com um processo de análise sobre o seu gozo e suas dificuldades de renunciar a ele? Questionar e responsabilizar o internauta que navega pela internet sobre a sua modalidade de gozo? Parece que é disso sim que se trata na clínica psicanalítica contemporânea. Interrogar cada sujeito no seu gozo, portanto, internauta: Agiste conforme o seu gozo?

Curitiba, 02 de agosto de 2014.

GLEDSON M. B. DOS SANTOS

por: Gledson M. B. dos Santos