Angela M S. Valore
Trabalho apresentado no encerramento da XII Jornada de Apresentação de Trabalhos e Cartéis da BFC”, Dezembro/2001.
"Este trabalho é dedicado a um amigo. Seu nome era Norberto Irusta.”
Desejo-lhes dizer que este foi o meu trabalho mais demorado e o mais penoso. Em nossa
reunião de trabalho do ateliê de clínica de agosto (2001) eu anunciei que estava preparando um
trabalho de luto para esta jornada. Eu havia começado em julho e só pude fechá-lo ontem. Algumas
linhas por dia. Por tudo isto talvez ele seja um pouco demorado. Em outro momento eu creio que
poderia falar sobre o mesmo tema com umas poucas páginas. Nestas circunstâncias eu tentei, mas
não fui capaz de pôr em poucas palavras o que desejava dizer. Este trabalho para mim é uma
colocação em ato de palavra, exatamente do processo que vou descrever. E o luto não dá para
resumir. É preciso cortar fio por fio. Assim, pedi ao nosso colega Luiz Renato, responsável por esta
jornada, autorização para me estender um pouco mais.
Dada a hora, a semana, os dias de trabalho que me antecederam, espero contar com a sua
paciência e lhes agradeço por me permitirem partilhar com vocês o que pude produzir. Sem o quê, o
meu trabalho não chegaria ao fim de fato.
Eu vou falar de coisas simples, não para que vocês compreendam mas para que eu me
escute. O que quero dizer com isso: Este trabalho não é para meus pares analistas ou para os nossos
membros em formação. Este é um trabalho para o meu trabalho. E por isto eu agradeço por
compartilhá-lo com vocês. Eu vou ter também que falar de coisas complexas, mas vou procurar
fazer isso da forma mais simples que eu puder.
Vou começar com uma poesia da qual sempre gostei muito. Foi a primeira que me ocorreu
quando eu sentei para começar o trabalho. É de Jandyra Kondera Mengarelli.
“Nem tão só
vive aquele que tira do bolso
a palavra gasta como quem procura,
com a ponta da língua
uma saudade
entre os dentes"
Nascimento e morte, dizem alguns, são as únicas certezas que temos, sem sermos loucos,
quanto a este breve intervalo a que chamamos nossa vida. Entretanto, mesmo estas nos escapam
quando somos lembrados de que para sermos sujeitos não basta ter nascido e que para aceder à
morte, tal como nos indica Antígona, não basta morrer.
“Sabemos que os ritos não preenchem o vazio da morte, mas prestam um suporte simbólico
ao intento de inscrever a perda." Historicizá-la.
Nascimento e morte. E, entre eles, os maus encontros. É de cortes e emendas o caminho de
um à outra. Esse trabalho minucioso, detalhado, cujas filigranas lembram o das nossas rendeiras ou
das bordadeiras de crivo, entretanto, não se aprende a ponto de poder fazê-lo cantando, só por tê-lo
exercitado desde o berço.
O trabalho de luto, como Freud nos fez ver, é de descostura, ponto por ponto, ali onde a
ligação ao objeto perdido se desdobra nas representações de coisa que nela se entreteciam. E é de
contornar o furo sem deixar que as peças se separem e de voltar alinhavando até a borda sem apertar
demais a costura. Porque nunca se sabe quando será preciso voltar a desfazê-la e refazê-la outra vez.
Até aqui por metáforas, pelas beiras, como me convém pelo que o tema me toca nestes
tempos, venho me acercando da questão do luto. Reservo a da melancolia, pela limitação do nosso
tempo e pelo parentesco existente entra ela e as disfunções do -φ, para a minha exposição da
próxima reunião de trabalho do ateliê de clínica, última do ano.
A descrição do trabalho de luto no texto freudiano podemos recuperar aqui em rápidas
pinceladas, visto ser velho conhecido de todos.
O teste de realidade confirma a perda do objeto. Torna-se necessário retirar toda a libido nele
investida. Mas, no que diz respeito a abandonar uma posição libidinal, nossa resistência se equipara
à teimosia de uma mula que empaca. Chegando esta recusa, em certos casos, a operar uma distorção
da realidade em que o apego ao objeto impõe conservá-lo alucinatoriamente.
Entretanto, normalmente, diz Freud em sua singeleza, prevalecerá o reconhecimento da
realidade da perda. Inicia-se aí um longo trabalho de integrá-la, durante o qual a lembrança do
objeto amado e uma parte da ilusão de reencontrá-lo acompanhará de muito perto o caminhante. E o
trabalho consiste em evocar, por hipercatexias, o que no texto original é designado como sendo
“cada uma das lembranças e expectativas isoladas através das quais a libido está vinculada ao
objeto". Ali o desligamento terá que se operar sobre uma por uma, até que a libido, retornando ao eu
se redisponibilize. Cada laçada pela qual o investimento libidinal vem cernir uma representação do
objeto, deverá ser decomposta nas representações de coisa que nela se articulam. Sendo estas
mesmas apresentações uma série de marcas de "traços inconscientes”, como já dizia Freud,
justifica-se a demora do processo. A concentração que exige que “todo o investimento psíquico seja
retirado do mundo externo sobre o próprio eu”, esvazia e empobrece esse mundo aos olhos do
sujeito enlutado. Freud distinguia alguns aspectos da reação à perda do objeto como eminentemente
melancólicos, a princípio. Mas, à medida que o acompanhamos, a maioria destas diferenças vai se
dissolvendo, restando umas poucas mas absolutamente capitais, das quais nos ocuparemos na
ocasião anunciada.
Quanto à identificação do eu ao objeto, descrita inicialmente como melancólica, sabemos
que participa como um tempo, mais ou menos evidente, mas inevitável, do trabalho de luto.
Pretender colocar-se no lugar do morto, ir com ele, por exemplo, são suas aparições mais
elementares. As auto-recriminações e as críticas ao objeto amado e perdido são verso e reverso de
um mesmo movimento, que revela não só o caráter ambivalente da relação objetal, mas a natureza
da operação inaugural que a perda do objeto deixa a descoberto.
A presença de uma face hostil do objeto perdido é propriamente estrutural e a luta interna,
em que o amor e o ódio por ele se enfrentam, é comum a ambos, melancolia e luto. Na distinção
entre os destinos que este enfrentamento tem a seguir, em uma e em outro, Freud indicava já o que
veremos ser, finalmente, a saída do trabalho de luto. Para ele essa batalha se deve ao fato de que, o
que se trata de desconectar, as representações de coisa, elas habitam, por assim dizer, o
inconsciente. Assim, o empenho em separar a libido consiste num trabalho que implica o sistema
inconsciente. O que ocorreria é que no luto há possibilidade de que esse processo encontre o
“caminho normal, através do pré-consciente, até a consciência. Poderíamos complementar: até as
representações de palavra. O que é o mesmo que dizer que a saída para o luto passa pela articulação
na palavra. Voltaremos a isso.
Quanto à dor, que Freud pensava tratar-se do grande enigma do luto, já no “Projeto de uma
psicologia para neurólogos”, ele descrevia como a irrupção de grandes quantidades de excitações
que, ao chocar o sistema, exigem descarga. A dor participa, portanto, de uma operação pela qual um
exterior se faz interior. Em sua concepção, assim como a experiência de satisfação deixa traços,
entre os quais virá adejar o desejo, também a vivência da dor marca. Ponto de origem do afeto.
Estamos aí de cheio no tema da angústia, que para Lacan é inaugural. No que chamou de um
primeiro nível, ele nos lembra que a realidade do Outro se presentifica – como a impotência do
nascituro o manifesta – pela necessidade. É só num segundo nível que incidirá a demanda do Outro.
É aí que o bebê cede algo. Algo que se destaca dele a partir de onde se pode fala em objeto a. A tese
lacaniana é de que a angústia aparece antes de qualquer articulação, como tal, da demanda Outro.
Seria ela o ponto de partida dessa primeira entrega que faz o pequeno ser – ao perder algo de
si destacado pela demanda do Outro – e a sua emergência, sublinha Lacan, não pode se manifestar
senão no grito. "Grito para fazer silêncio. O grito perfura o espaço produzindo um vazio. Mas, que
vazio se trata de produzir quando poderíamos pensar que ainda não há nada? Lacan faz referência à
angústia tóxica, situada por Freud no nascimento, como intrusão radical de um meio externo. Isso
que vem do Outro como sua primeira incidência, cujo efeito é de asfixia, pelo que o trauma do
nascimento não seria o da separação da mãe, mas da aspiração em si disso que precisa ser expulso.
É por esse caminho que Lacan chega a propor um "desejo de desmame”. Ceder algo de si para
poder se separar, seria o preço a pagar pela vida. A incidência do significante e o traço que ele deixa
dessa separação, consistindo no resultado desse primeiro confronto com o Outro, pelo qual o sujeito
emergirá já rachado, cindido, separado desse objeto que foi para o Outro.
Pedaço que uma vez caído, adquire o estatuto de resto dessa divisão. O objeto a, causa do
desejo, que só advém como tal enquanto faltante, jamais reencontrável, entretanto buscado em todos
os objetos sobre os quais a metonímia do desejo fará recair a libido. Objetos substitutivos, cada um
não mais do que um lugar-tenente daquele originalmente perdido. Maus encontros pelos quais,
presente o lugar-tenente, é impossível ignorar sua discordância em relação àquele que causa o
desejo.
Se o temos, pode-se desdenhá-lo pela sua incapacidade de preencher todo o desejo. Mas,
uma vez perdido, vem coincidir pelo menos por algum tempo com o objeto faltante. O próprio
objeto causa do desejo. Esse e o momento em que a falta estrutural pode vacilar. É a perda na
realidade que faz com que o objeto substitutivo seja tomado como o do desejo. O trabalho de luto
consiste em distingui-los, restaurando ao objeto a o seu lugar de falta. Trata-se aqui de degradar o
objeto amado para o que é preciso retê-lo pelo tempo necessário. Retê-lo para surrá-lo, enxovalhálo,
até transformá-lo num pano de chão ente se possa finalmente jogar fora... "naquela mesa onde eu
me sentava com ele, ele comia mais do que eu, ele arrotava, ele filava cigarros e me fazia pagar a
conta...". Retê-lo para amá-lo outra vez. Em cada lembrança que é preciso desatar, uma a uma. Mas
agora, "naquela mesa esta faltando ele e a saudades dele está doendo em mim”, como diz a canção.
Não é portanto a morte que dói, não é a perda. É o luto. Trabalho que se revela um jogo de retenção
e expulsão em cujos lances se arrisca o desejo. Trabalho paradoxal.
Lacan, ao considerar as relações entre a angústia, o acting-out e o luto afirma que só
consentimos nesse trabalho, só fazemos luto, na medida em que o objeto pelo qual nos enlutamos
era para nós um suporte da nossa castração. Sofremos luto por alguém de quem possamos dizer: eu
era sua falta. Sendo que uma das vicissitudes do processo seria a de saber em que se fazia falta
àquele alguém. Que objeto se era para ele.
Como um parêntese: Isso nos permite interrogar a asserção de Freud de que não assistimos
nem luto nem melancolia, por exemplo, diante de uma morte, quando aquele que morreu não era
importante para o sujeito. Na verdade este fica dispensado de sofrer quando ele mesmo não pode
dizer que fizesse falta ao morto.
Reportemo-nos à situação original. Quê lugar de objeto eu tinha para o Outro? De objeto a.
Se o Outro desaparece, desaparece com suas demandas: “ele já não me pede nada, já não quer nada
de mim", o objeto a retorna sobre o sujeito. Este ficará identificado a esse objeto que o Outro não
mais pode guardar. O objeto perde seu lugar de alteridade inacessível que deveria ser assegurada
pelo significante fálico. Como se vê, é de uma vacilação no fantasma que padecemos no luto.
Diante da morte de um ente querido esse objeto, cujo lugar aquele ocupava para o sujeito e que este,
mesmo sem saber ocupava para o morto, ameaça cair sobre o sujeito. Como se a força de
"gravidade" representada pelo símbolo da punção ◊ no fantasma, falhasse. Choque de planetas cuja
destruição se converte em ameaça real na melancolia.
No luto o sujeito vacila entre a posição de $ e de a. Mas o trabalho é de restabelecer o
fantasma $ ◊ a.
O que Hamlet não pode fazer. Não que a morte de seu pai não tivesse significado nada. Mas
ele só pode aceder ao luto depois de uma série de acting-outs, o quê, na palavra de Lacan, é prova
da ausência do luto. Que em primeiro lugar, no caso Hamlet, é a ausência do luto de sua mãe. Ele
permanece fixado ao que, em princípio, deveria ser o desejo dela. Acontece que Gertrudes, a rainha,
mãe de Hamlet, não aceita que possa faltar seu objeto como se ilustra na passagem direta, sem
escalas, entre Hamlet pai e Claudius. Do banquete fúnebre ao jantar de núpcias numa mesma
refeição. Voracidade que delata nela a ausência do luto do objeto, transformando a todos em uma
série de iguais. Hamlet pai, privado de qualquer privilégio nessa série, vai habitar uma função
desprovida de alteridade. E como marido, um lugar de serviçal cortês. Isso tudo sem se sentir
incômodo. Que é feito do desejo desse pai?
Como atravessar essa vicissitude de saber em que se fazia falta a ele? O resultado é que
Hamlet filho se paralisa. Não pode produzir o ato a que se destina, porque desejo falta. E falta
porque se desmoronou o ideal.
Consumar pela segunda vez a perda, como prescreve Freud, torna-se impossível para quem
não fez luto sequer da mãe. Para Hamlet, contudo, como sabemos, ainda restava uma saída.
Entre nós, a palavra luto designa a perda e a reação a ela. Portanto enoda o real de onde
irrompe a perda, o imaginário no sofrimento e o trabalho de integrá-la no simbólico. Forma
elementar de fazer referência ao fato de que o luto se articula igualmente ao espelho e ao campo do
desejo e da lei.
Impossível não lembrar Kant com Sade. Lembrar, para marcar mais uma vez, que a ética
lacaniana não coincide nem com o interdito kantiano nem com o imperativo do gozo, conforme
Sade o apresenta, como vindo do Outro. A lei impõe a falta e com ela a divisão do sujeito. Logo,
impõe o desejo e não o proíbe. A lei moral de Kant constitui um imperativo que recalca a castração,
enquanto a gozação do fantasma sadeano, em sua interpretação perversa a renega. A perversão. Eis
aí algo que não pode estabelecer com o luto, sempre o alheio, nenhuma relação senão de lucro. E
isso sem ser dono de funerária.
Marcel Czermak, segundo me contaram, preocupado com os efeitos no interior da
instituição psicanalítica do inevitável convívio entre enlutados e não enlutados pela perda de Lacan,
publica um ano após sua morte, ao que parece, um texto a que chamou “Notas sobre as perversões e
sua relação com a vida nos grupos” que teria causado um certo impacto no meio lacaniano da
época. É um texto simples, ao qual vocês podem recorrer facilmente. Mas me parece oportuno
retomá-lo aqui, pela sua atualidade no que concerne às circunstâncias que estamos vivendo e pela
relação que podemos fazer com o transcurso do luto nas instituições.
“O difícil” diz Czermak, “continua sendo diante do talento perverso, não importando qual
seja a estrutura que o manifeste, não depor nele o olhar como se depuséssemos as armas a seus pés”.
Para citá-lo textualmente, “é ao que incitam os sujeitos que se apresentam sempre na unidade, sem
divisão, quer sejam moralistas... legisladores... ou investidos de outra função, o que haveria de mais
hipnotizaste do que aquele que pretende dizer a verdade sobre a verdade?”
Ele destaca, portanto, o amor à verdade e à palavra, que são tão caros a nós neuróticos, como
instrumentos perversos por excelência no laço social, independente da estrutura daquele que os usa.
Diz ele que a perversão é mais freqüente do que se pode imaginar. Mas que dificilmente é
assinalada, em razão do colapso que ela sabe realizar com facilidade no laço comum. E acrescenta:
“É mesmo batendo na corda da esperança em cada um”, em particular, “que o perverso pode levar
adiante o seu assunto”... “ele deixa entrever o falo e se o faz, é porque está certo de saber do que o
Outro goza.” Embora o falo que ele oferece, ele saiba que “é um logro, uma armadilha, um
chamariz e que o que se trata de possuir é você”. Para isso ele chega a “convencê-lo de que você é o
verdadeiro falo”, o portador da sua verdade. Que é você de quem o grupo está precisando e chega a
convencê-lo disso tão bem que o faz brandir por aí na cara dos outros a verdade dele, sem saber que
não é ao falo imaginário que você está sendo promovido senão que é a objetos que está sendo
rebaixado. Czermak lembra que os que atuam num tal registro consideram estabelecido,
tacitamente, um contrato que os autoriza a isso, a partir do momento em que alguém simplesmente
lhes prestou atenção. Dar-lhe ouvidos é interpretado por ele como concordância, consignação de um
pacto que dá ao perverso ensejo de denunciar uma recusa de colaboração em seus intentos, como
uma traição – e ele fará ver que você “tinha concordado” antes. Talvez ele exija, em nome de uma
“ética” que você sustente uma posição e a palavra que de fato nunca deu.
E ele o fará sempre, e acima de qualquer suspeita, em nome do Bem Público, do Bem
Comum, em cuja representação ele se autoriza a falar justamente por não ter erros, por estar certo
de não ter falha nem falta. Sem dúvida, é por devoção que ele age! E ninguém ousaria pensar o
contrário!
Mas, sabe-se lá porque Czermak fez questão de introduzir isto que segue, ou com quem,
diabos, ele estava falando, mas acrescentava que aquele que estabelece laços perversos, constitui
“muitas vezes a relação com quem o acolhe, e lhes é hospitaleiro, com uma provocação, onde
questiona repentinamente a legitimidade da atividade do seu hospedeiro, os fundamentos do seu
exercício e da sua qualificação, o porque da sua ação, com um volteio” que pretende fazer crer que,
justamente, aquele que o acolheu, que lhe deu um lugar, deva ser considerado o próprio “agente da
arbitrariedade neste mundo, ainda por cima, gatuno e – ainda mais – incapaz. O que deixa sempre
subentendido” embora ele nunca o afirme, que “ele poderia sempre fazer melhor.”
Isto nos leva a constatar que uma conduta em grupo tem caráter perverso quando corrompe o
gozador ingênuo que desconheça a precariedade da própria castração; quando no próprio interior do
grupo ataca o que são seus ideais, mas não abandona a comodidade do seu ninho, e destitui o que ali
tem função de Alteridade. Tal conduta justamente por seu caráter de aparente inocência decente,
seduz, e potencializa toda ambivalência naturalmente pré-existente nas relações dentro do grupo,
ambivalência que inexoravelmente, seguindo Freud, impede e perturba o curso de um luto, condição
na qual Lacan situa a irrupção dos acting-out.
Além disso tal estado de coisas teria o poder de introduzir neste grupo, por meios mecânicos
e pela porta de trás, ao modo de uma violação, um modelo da ética pós-moderna. E olhem que
Czermak publicou este texto em 1982!
E na vigência dessa ética, como lembra Rivadero, da Escola Freudiana de Buenos Aires,
mutilam-se as diferenças e se cai na segregação generalizada. Para usar um termo do espanhol que
entre nós ganha em equivocidade, borram-se os atos do passado; impõe-se o esquecimento dos atos
em favor das aparências, com o quê, a temporalidade se anula. Nem precisaríamos, mas ainda bem
que a temos, da genialidade de Dufour para nos assegurar de que este conjunto instaura um tempo
em que o trabalho de luto é impensável.
Bem, imaginarão alguns, felizmente Czermak se referia aos grupos. E que a instituição
psicanalítica não é um grupo. Ou não deveria... No entanto, é justamente à instituição psicanalítica
que ele reserva seu alerta maior, lembrando que em certas circunstâncias a distância entre perversão
e vida institucional pode se revelar ínfima.
É aos psicanalistas, até mesmo aqueles de então, que muitos admiramos, que ele achava
preciso lembrar que o Bem Soberano, o bem moral não existe, e que uma ética do bem para todos é
perversa. Se a paixão por esse bem corruptor permite apontar os defeitos dos outros ela supõe no
acusador estar acima do bem e do mal. Posição que somente o perverso habita.
...É claro, tinha morrido Lacan... Mas se não há aí um ponto que deveria nos fazer refletir, a
todos nós, pobres mortais cindidos, não sei a quem haveria de concernir. É preciso que pensemos
nisso.
Já descrevemos aqui o que, para o sujeito ou para o grupo dificulta o trabalho do luto.
Podemos finalmente concluí-lo. E do quê precisamos? Lacan nos adverte em seu seminário sobre a
angústia, que a condição para que o trabalho do luto logre êxito, e que é, ao mesmo tempo, seu
principal problema, é a “manutenção das ligações pelas quais o desejo está suspenso, não de a, mas
de i(a). O objeto a, está de hábito mascarado por trás de i(a) do narcisismo. O i(a) do narcisismo
está aí para que o a seja mascarado, desconhecido em sua existência”.
Para apreender melhor importância de i(a) na manutenção dos vínculos do desejo,
comecemos por recordar o que vimos sobre a dor, como referida ao tempo em que o objeto se
constitui como perdido. Tampo da incorporação, que na tradição freudiana é o da devoração oral (e
implica o Caráter hostil do objeto, que para ser incorporado precisa ser destruído). Mas o que se
incorpora, é um lugar vazio. Falta radical no Outro Real. Pela mesma operação, se dá a expulsão de
um gozo. Gozo do Outro inexistente, tóxico, mortífero. É aí que se instala a dimensão da perda
como condição estrutural. Esta dimensão da perda é essencial ao estabelecimento da metonímia:
Perda da Coisa no objeto. Se ele está, é porque a Coisa está como perdida. Furo central em torno do
qual gravita o desejo. Cada perda de objeto deveria, portanto, relançar a metonímia. Entre uma e
outra inscreve-se porém o trabalho de luto, desarticulando as ligações, desnudando as marcas do
apagamento da Coisa no traço, como reafirma Clara Cruglak, caminho regressivo que revela o vazio
que os objetos cobriam. O objeto, desconectado dos atributos de que estava investido, cai,
recuperando-se o vazio.
O trabalho do luto não termina, porém, com a retirada da libido do objeto, nem seu êxito
consiste em por outro objeto no lugar do perdido. Termina no reasseguramento dos vínculos que
sustentam o desejo desde i(a). Sustentação que depende da articulação entre a falta e o objeto.
Função de (-φ), onde se dá a coordenação entre a falta no Outro e o objeto a.
É ao -φ, referindo ao investimento libidinal que não passa pela imagem, substrato
organizador da dialética narcísica, que cabe a função de manter os vínculos pelos quais o desejo se
sustenta.
É com os esquemas óticos que Lacan ilustra essa passagem. A imagem narcísica, i(a), é no
olhar do Outro que a criança a encontra assentida. É o que inaugura a relação imaginária. Pelo
investimento da imagem, enquanto projeção de uma superfície. O i(a), imagem narcísica, dá o favor
do seu engano, o de uma completude. Unicidade na qual os pedaços do corpo desorganizado até ali
se reúnem. É no olhar do Outro que o sujeito pode ser tomado como um. E graças àquele espelho,
ver-se em i’(a), imagem especular. Embora a falta sobre a qual a imagem se monta e que por ela é
velada não apareça nela senão como um “branco”, representado por -φ, é função deste sustentar o
vazio inaugural. Isto como verdadeiro operador do engano, mas também como suporte dos laços
com o ponto da própria gênese do desejo.
O (-φ) cujo lugar se recorta como o do falo imaginário instalado como ausente, está aí para
lembrar que só imaginariamente ele se apresentou como possível, e que isso mesmo só foi possível
porque ele era inexistente no Outro. Mas como o corte da castração incide sobre o objeto a, que não
aparece no espelho, a completude imaginária com que nos vemos pelos olhos do EU persiste e sua
confirmação buscamos agora nos outros por quem ansiamos ser amados.
É o -φ, lugar da falta, como suporte de i(a), imagem narcísica, que dá ao i’(a), reflexo da sua
imagem que retornou do Outro aos olhos do próprio sujeito, o seu “prestígio”. É, em última análise,
a função de -φ que possibilita o engano. Mas é também – se o perdemos – o que, no final nos
lembrará que não é do engano, mas da falta que o engendra que precisamos para continuar
desejando.
Se nos iludimos de que apesar da castração, deve haver em algum lugar o objeto que nos
complete, e que só não o alcançamos por impotência, é no curso de uma análise que passaremos
dela à impossibilidade. Essa coordenação entre o lugar da falta e o objeto a é o que Lacan designa
como função de (-φ). E eis aí, grosso modo, a relação indicada por Lacan entre a manutenção do
desejo e i(a), enquanto reserva libidinal operatória.
Que isso nos condene a transitar a partir daí entre o amor e o desejo, faz parte da aventura
neurótica. E como sabemos, não é sem saída.
Se, a despeito da castração, a neurose ainda guarda um mínimo de ilusão, isto diz respeito à
amarração borromeana, e é o que incita o sujeito a apostar seu desejo sem objeto, num objeto sem
garantia. Ainda, e na condição, de que sejam maus encontros.
Temos, portanto, em palavras simples, para que eu possa me escutar, porque Lacan afirma
que o problema central do luto é manter os vínculos pelos quais o desejo está suspenso de i(a), e
porque isso é essencial ao restabelecimento, ou relançamento da metonímia. Clara Cruglak o diz
mais bonito: “a perda de um objeto faz furo no real, comove a ordem simbólica e desgarra a cena
imaginária. A inconsistência imaginária no luto, impede que o objeto a se enlace na cadeia”.
Se o desejo vacilou, mas não pereceu, a cena se desmantelou, mas graças à eficácia da sua
sustentação estrutural, por fim se remontou. E se se pode relançar a metonímia do desejo,
restabelecendo a cadeia, pode-se passar da dor à lembrança. A presença do semelhante recobra
consistência e condições de sustentar a nova articulação daqueles traços, agora libertados, nas
palavras. Bordear o furo.
Lacan alerta: “não há ultrapassagem da angústia a não ser quando o Outro é nomeado”,
mesmo que a partir do momento em que o nome é pronunciado aí esteja o limite.
Trabalho de luto. Não basta perder o objeto. Há que parí-lo das entranhas da palavra e da
dor, para reencontrar o vazio que ele ocupava. E a partir daí, remontar, plano por plano, a cena da
vida. Há que tecer novas tramas, com o mesmo fio. Bordear a ferida, a fenda rasgada na leveza
insustentável do véu que nos suporta.
Bordar em torno dela, recuperando o fio partido, os elos de uma cadeia na qual se possa
emendar os outros furos. Dizê-los.
Até que também do nosso destino não reste mais que este traçado A nossa escrita no mundo.
“nós, os perecíveis, tocamos metais
vento, margens do oceano, pedras,
sabendo que continuarão,
imóveis ou ardentes,
e eu fui descobrindo,
nomeando todas coisas
foi meu destino amar e despedir-me.”
Canto XV
Pablo Neruda