Saber ler – Comentário sobre a formação do analista

Saber ler – Comentário sobre a formação do analista

Angela Valore
 
Se o analista é aquele que não recua do seu desejo, caberia perguntar o que forma, não alguém, mas em alguém a possibilidade de sustentar esse lugar em relação ao qual devemos dizer que é preciso cair dele para poder ocupá-lo. Esta questão, só aparentemente paradoxal, encontra seu avesso no pressuposto de que a transferência outorga um poder do qual o analista deve abster-se. Entretanto, se o problema de saber o que forma um analista chegou até nós como pergunta, isto quer dizer que não se deu a ela uma resposta, depois de mais de cem anos; ou apenas não aquela que se pudesse reconhecer como a redação definitiva? Temo que isto se aplique a quase tudo na psicanálise. E talvez ainda mais sensivelmente ao tema da formação psicanalítica, uma vez que as profundas diferenças históricas, políticas, de percurso e de produção entre as escolas, instituições, dentro do Brasil, mas, sobretudo entre os países, impõem que cada um de nós, no lugar e no tempo em que inscreve o seu trabalho, atualize esta questão.
Embora pareça haver bastante concordância, não me atrevo a falar em consenso, em torno de uma idéia, a do tripé, e de alguns princípios, é preciso, sempre, que nos deixemos interrogar por eles. Ainda que mais não seja, para que nos apropriemos do que foram, ou não, seus efeitos em nossa própria formação e naquelas para as quais pensamos que nosso trabalho possa contribuir. Mesmo que disso só se tenha notícias a posteriori. Aliás, a idéia de que o analista oferece seu ato ao acaso, ao que vier a acontecer, que me retorna da leitura de uma entrevista concedida por A. Jerusalinsky,
há alguns anos, evoca também a lembrança do tratamento dado por ele a um certo impasse no que diz respeito a saber, se, e quando o nosso trabalho contribui para, ou atrapalha, a formação dos jovens analistas. O que me pareceu formidável, em todo caso, porque não é comum nos perguntarmos de que modo nosso trabalho pode obstaculizar o percurso de alguém até a autorização. E não há dúvida de que isso acontece.
Aliás, a rigor, parece que não é comum falarmos sobre a formação, de um modo geral. Com exceção daqueles que têm sido nossos mestres, evidentemente, é forçoso reconhecer que pouco temos nos arriscado nesse debate, pelo menos fora do âmbito protegido das instituições. O que faz pensar, às vezes, se seria essa para nós uma “roupa suja que se lava em casa”. É fácil constatar. Basta correr os olhos pelas prateleiras das nossas próprias estantes. Títulos como a ética, a transferência, o desejo do analista, a autorização, a transmissão, incluindo os cartéis e até mesmo o ensino da psicanálise ali figuram. Mas aqueles nos quais se discuta em que medida cada um desses temas intervêm nos percursos ditos de formação, são mais raros. Não é de admirar.
De imediato, é possível pensar em duas séries de argumentos. Que talvez, sejam apenas duas formas de abordar a mesma coisa.
Uma delas, introduzida por Lacan no seminário “O ato psicanalítico”, estabelece que “há psicanalista”. Sem o artigo que indicaria uma universalização possível. A outra partiria do fato de que, tomando a princípio apenas um dos três fundamentos supostos de uma formação, é preciso dizer que uma análise, por exemplo, pode transcorrer sem que ao seu final se produza algo como o desejo do analista. E que, ao contrário, pode ser que isso se dê em casos em que não era esperado. A mesma falta de garantia se aplica ao ensino e à transmissão, assim como ao controle.
Tudo aponta para o mesmo. Não há uma identidade do analista. Ele ocupa uma função que deve perder. É uma posição da qual cai e para ela é
relançado: talvez, se pudéssemos arriscar uma aposta sobre o que forma um analista, seria antes o que o prepara para perdê-la do que o convida a ocupá-la.
Obviamente o que faz a especificidade da formação que nos concerne é a particularidade do discurso que é o nosso e da ética que o preside. A singularidade em cujo marco se inscreve isso, de que não há analistas, mas analista, responde pela dificuldade de isolar um traço comum que os definisse e que servisse ao propósito de se calcular quanto do quê resultaria na sua formação.
A esse respeito, justamente, Charles Melman, no texto, tão breve quanto pontual, intitulado “A essência do psicanalista”, seguindo a tradição freudiana de descascar a cebola, descarta as respostas mais ingênuas. Ainda que articuladas ao dito tripé, ele nos lembra que nem o manejo da teoria, nem a duração da análise assegurariam uma formação. Como ele diz, qualquer universitário pode alcançar o domínio dos textos. Poderíamos acrescentar que provavelmente com maior convicção, já que desembaraçado de uma ética que adverte contra as certezas e prescreve parcimônia ao servir-se do saber. Também não é garantia a duração da análise ou mesmo o reconhecimento creditado ao analista que a conduziu, dado que “a resistência à análise ignora o tempo e despreza a autoridade”.
É desagradável, mas oportuno recordar que vivemos tempos em que um certo braço, e obviamente não um braço certo, do movimento psicanalítico se estende na direção do continente delimitado pelo discurso universitário. Não apenas aquele que se pratica no meio acadêmico, mas também o de alguns grupos escorados na pequena mestria onde se produz um tipo de ensino, em geral paralisante, que promove os “candidatos” de que precisam para sobreviver.
Muito poderia ser dito acerca dos efeitos inibitórios de uma tal promoção, quando não nomeação, que não é o mesmo que nominação, já
que esta pode ser imaginária e aquelas o são sempre. O que é de se lamentar, sobretudo tendo em conta os aspirantes bem intencionados, embora se diga que de boas intenções o inferno está cheio.
É claro que a inibição do ato a que estaria sujeito um analista nem de longe se limita àqueles que tenham sofrido esse percalço, de ter tomado um caminho potencialmente desviante quanto ao seu propósito. Nem a inibição, nem o risco de que o acting-out irrompa da posição do analista na transferência. Em geral, estamos de acordo em que esses são momentos em que o recurso a uma análise de controle poderia restituir ao analista a confiança no discurso, possibilitando que ele se reequilibre no lugar do qual corre permanentemente o risco de ser basculado.
Tanto a inibição que impede o ato, retendo-o sob o efeito tampão do resíduo de um gozo, quanto os acting-out que podem fazer sua aparição onde a demanda surge do lado do analista, seriam boas ocasiões para iniciar um controle.
O intervalo que costuma separar o momento em que um analista dá início à sua prática, fiando-se, talvez, na idéia de uma “análise suficiente” e o momento em que a terá terminado, já deveria justificar a observância da prática do controle. Embora o que às vezes se constate seja, ao contrário, que uma possível insuficiência de análise leve o iniciante a recusar submeter sua prática a uma escuta, enquanto para um analista não resulte, em absoluto, incômodo fazê-lo.
Ainda que a prática do controle possa encontrar resistências, é admirável a leveza com que o próprio Lacan se referiu a ela no Seminário XXIII, o Sinthoma, dizendo: “Acontece que me dou ao luxo de supervisionar, como se diz, um certo número de pessoas que se autorizam por si mesmas, segundo minha fórmula, a ser analistas. Há duas etapas. Há aquela em que elas são como o rinoceronte. Fazem mais ou menos qualquer coisa e sempre dou-lhes minha aprovação. Com efeito, sempre têm razão.
A segunda etapa consiste em tirar proveito desse equívoco que poderia liberar algo do sinthoma”.
Um analista seria aquele que sabe ser exigido dele coditianamente “emprestar-se” a suportar o fantasma do seu analisante, assim como abster-se de na ignorância, impor ali o seu próprio.
Assim, o afazer psicanalítico nesse encontro permanentemente renovado, deve dar conta da vicissitude de suportar a força potencialmente cativante desse lugar de objeto que ocupa no fantasma de seu analisante. O risco, que seria a captura num gozo masoquista, estando implícito na posição em questão, que implica o que Lacan já indicava em sua “Carta aos italianos”, ao dizer que não há analista sem que lhe tenha vindo o “desejo de ser dejeto dessa humanidade” que não deseja saber. O que foi dito de forma talvez mais inspirada, no Seminário XVII, sobre o Avesso da Psicanálise, onde, aliás, Lacan inverte também o lugar do sujeito suposto saber, propondo que nós somos supostos saber não grandes coisas e que o que a análise instaura é o contrário, quando “o analista diz àquele que está por começar: Vamos lá, diga qualquer coisa, vai ser maravilhoso. É ele que o analista institui como sujeito suposto saber”. Mas sobre o lugar do analista e o que se espera de um, diz que é a ele, e somente a ele, que se endereça a fórmula Wo es was, soll ich werden. “Se o analista trata de ocupar esse lugar no alto e à esquerda é porque de modo algum está lá por si mesmo. É lá onde estava o mais-de-gozar, que eu, na medida em que profiro o ato analítico deve advir”.
O que habilita o analista a ocupar esse lugar, sem correr nem expor seu paciente demasiadamente aos riscos de que nos alerta o poeta, porque afinal não “são demais os perigos dessa vida, para quem tem amor”?
O que me prepara para isso, senão o desejo do analista? Já no seminário XI ao apresentar a transferência como o que, da pulsão, desvia a demanda, e o desejo do analista como aquilo que a traz ali de volta, Lacan
indica qual é então o que acreditamos ser o único caminho possível em direção a uma formação psicanalítica. Aquele que vai da transferência ao desejo do analista, a ser lido como desejo de obter a diferença absoluta. É preciso dar a esta afirmação todo o seu peso. O peso de ser uma das que, em nosso discurso não admite nenhuma relativização.
Se há, no que diz respeito à formação do analista um ponto em condições de suportar toda a equivocidade, toda a abertura de um dispositivo em cujo centro há não mais do que um furo radical, esse ponto certamente repousa na análise como passagem ao desejo do analista. Há pouco aludi ao modo como no seminário XI Lacan articula a relação entre esse desejo e a transferência. Na mesma lição, refere-se a esta última, entendida nesse ponto como o que poderia fazer obstáculo ao progresso da análise, como se exercendo no sentido de uma demanda de identificação, enquanto o desejo do analista operaria exatamente no sentido contrário. É claro que sabemos que a direção da cura guia esse dito atravessamento do fantasma, o que não implica, claro, o defenestramento.
Não se trata de atravessar a janela, de precipitar-se no mundo, mas sim de atravessar, piso por piso, conforme representados no grafo, até o ponto ao alto, onde há ar e de onde é possível fazer cair a identificação do sujeito com o objeto do seu fantasma, liberando assim a fixação a um gozo parasitário. Lacan diz que o desejo do analista é o que aproxima da pulsão, separando o a, colocando-o à distância do Ideal que o analista é chamado a encarnar.
Seria então uma meta na análise, passar da transferência amorosa própria da dimensão imaginária, que vela para o sujeito o lugar que ocupa em seu fantasma, a essa outra dimensão da demanda, a pulsional. E é o desejo do analista o que possibilita essa travessia, para que ao final de uma análise o sujeito experimente no encontro com a pulsão, o real impossível de esgotar.
Se isso vale para qualquer analisante, vale ainda mais para o analista que aí acederia ao desconforto, única posição a que pode postular, e na qual nada há de imajável com que uma identificação fosse possível.
A. Jerusalinsky, na entrevista que mencionei no início, falando da necessária desidealização, lembrava que os analistas não são nada exemplares e que o pior que poderiam oferecer na formação seria a si próprios como modelos. Ainda que a transmissão requeira um certo grau de mestria, não é demais lembrar que a palavra maître em francês, que costumamos traduzir por amo, ou por mestre, comporta precisamente as duas acepções. A do “Magister”, mestre enquanto transmissor, e a do “Dominus”, amo. Nem amo, nem exemplo, o analista em sua função na transmissão deve reconhecer que a eficácia da escuta não se deve a nenhuma virtude particular sua, nem ao seu saber. Trata-se de precaver-se como sugere J. Zuberman, tanto contra o conhecimento paranóico, quanto contra uma suposta “iluminação”.
Para escutar a letra no que se diz, não é preciso ser iluminado. É preciso aprender a ler.
A única atenção que convém dar ao termo da identificação em relação ao final de análise diz respeito ao que foi proposto por Lacan em alguns dos seus últimos trabalhos. Obviamente, não se refere a uma identificação com o seu analista, mas com o seu sinthoma, enquanto condição para o “saber fazer ali com”. Ao propor como avanço teórico, o quarto anel como parte da estrutura, diz que “há nela algo que falha e que somente se resolve no real, que para um analista pode ser sua própria prática”.
Assim, advertido, o analista estaria apto a suportar o des-ser que lhe é exigido na cura analítica. Em condições, possivelmente de encarnar a famigerada fórmula pela qual um analista é aquele que se autoriza de si mesmo. E de alguns outros como se lembrou de juntar Lacan anos mais
tarde. Então se houve análise, se ao final se verifica que ela foi “didática”, vale dizer, que produziu uma passagem de analisante a analista, depois de tudo, desse analista, espera-se que se autorize por si mesmo. Porque não há Outro que dê conta por ele do seu ato. Mas é o analista que se autoriza de si mesmo. Não é o “candidato” que se autoriza a analista independentemente de qualquer alteridade.
É o analista que se autoriza e, no que o faz, conta com o testemunho de outros que puderam ler nos efeitos que sua análise produziu, no nível da sustentação da ética analítica, o que só depois se sabe terem sido provas. Para isso contamos com as instituições analíticas. Ainda que pudéssemos dispensá-las como lugar, incorporal, mas ainda lugar de formação, seria ali que iríamos para encontrar esses “alguns outros”. E para trabalhar.
Na lição final do Seminário “Para introduzir a psicanálise nos dias de hoje”, de Charles Melman, encontra-se essa exortação ao trabalho, que consiste em nos lembrar de que as questões essenciais em nosso campo não estão concluídas e que não estamos nele a passeio, para admirar a beleza do que já foi plantado.
E para concluir, lembro-me de haver lido, há muitos anos, num outro texto de C. Melman, cujo título, à época, impressionou-me profundamente: “Eu amei muito Lacan , mas não o comi”, a afirmação que produziu grande efeito em minha própria formação de que é possível reinventar a psicanálise a cada dia. Mas na condição de fazê-lo dentro dos limites do que prescreve o desejo do analista. Simples assim. Grave assim.

REFERÊNCIAS:
JERUSALINSKY, Alfredo. Quando fala um analista. Revista da A.P.P.O.A, n. 29 – dez. 2005.
LACAN, Jacques. Nota italiana (1982). In__- Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro XI. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964), Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1979.
___________ O Seminário, livro XX. O ato psicanalítico (1967-1968); publicação para circulação interna. Escola de Estudos Psicanalíticos.
___________ O Seminário, livro XVII. O avesso da psicanálise (1969-1970), Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.
___________ O Seminário, livro XXIII. O sinthoma (1975-1976), Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
MELMAN, Charles. A prática psicanalítica nos dias de hoje. Rio de Janeiro: Tempo Freudiano, 2008.
___________Para Introduzir a psicanálise nos dias de hoje. Porto Alegre: CMC, 2009.
VEGH, Isidoro. O próximo: enlaces e desenlaces do gozo. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005.
ZUBERMAN, José A. Reflexões sobre a prática da análise de controle (2000). In__- Análise de controle. Porto Alegre: CMC, 2008

por: Angela Valore