Por quê os botos podem salvar o mundo

Por quê os botos podem salvar o mundo

Angela Valore

Contemplar a pesca artesanal da tainha em Laguna é como assistir a
um espetáculo.
O palco pode ser o canal, junto ao molhe. O cenário, céu, morro e
mar, é repintado todos os dias pelos ventos, pela chuva, pelo ritmo das
marés e das estações. Você toma seu lugar na areia. A música começa.
Pode-se não escutá-la, mas deve haver uma música ali, cujo andamento
marca a entrada dos personagens.
Além da linha d’água, perfilam-se os pescadores com suas tarrafas
perfeitamente enroladas em torno das mãos. Imóveis. Em sua concentração,
são como arcos retesados, prontos para disparar a flecha. Diante deles, mas
invisíveis para a platéia, a presença suposta do cardume de tainhas, que só a
chegada de um terceiro personagem virá confirmar. É o boto, denominação
local dos golfinhos nariz de martelo, que ali, além disso, têm nomes
mesmo, carinhosamente atribuídos pelos pescadores,que os identificam de
longe. Pode ser o Caroba, o Eletrônico , ou o Figueiredo...que com suas
manobras majestosas, suas acrobacias, dá a deixa que põe o quadro em
movimento.
Inicia-se o bailado. O boto salta e denuncia a presença das tainhas.
Encurraladas por ele, tornam-se presas fáceis das redes, disparadas
realmente com a precisão e a velocidade de uma flecha, ao sinal do boto.
Ato seguinte, as redes são puxadas, recolhidas, e as tainhas capturadas são
retiradas. As tarrafas são novamente enroladas e tudo recomeça.Um ritual
que se repete exatamente como era há um século. E nos séculos antes
desse. E como teríamos o direito de esperar, e o dever de garantir, que
continue sendo pelos próximos.
Se você tiver a sorte de assistir a essa cena, pode se emocionar até
as lágrimas. Ou aplaudir. Ou tudo ao mesmo tempo. Mas será inevitável
refletir.
Talvez ali, naquele pequeno universo,esteja armada,com todos os
seus termos,a grande equação que a psicanálise vem se propondo há
décadas,diante das transformações do laço social na
contemporaneidade,em relação à qual se passou a falar de uma “perversão
generalizada”. Entenda-se que perversão corresponde ao que, na
psicopatologia clássica era chamado de psicopatia.
O que se diz é que passamos de uma cultura neurótica, e
neurotizante, a da época de Freud, para uma cultura que promove a
perversão. O mundo de neuróticos que sempre foi a fonte dos nossos
infortúnios, mas também das nossas delícias, estaria se transformando num
mundo de psicopatas ? Talvez não chegue a tanto,mas o alerta está dado.
Esta transformação, seria a conseqüência de uma mutação ética, por assim
dizer, patrocinada pela conjugação de um novo estado do capitalismo e da
globalização.
A ideologia da economia liberal, ultrapassa a astúcia, idiota, mas
astuta, da economia de capital, ao transmutá-la em uma economia de
mercado,na qual um novo deus ocupa agora o altar e vem cobrar seu culto.
O consumo. E portanto, culto ao objeto. Todo o discurso do mercado, é no
sentido de nos convencer, a cada passo, de ter produzido um novo objeto
sem o qual não poderemos mais passar. E nós, somos assim sutilmente
degradados da condição de sujeitos, à de consumidores. Qualquer um pode
constatá-lo à simples lembrança do novo código que agora rege nossas
relações. Eu posso não gostar que os meus direitos sejam assegurados
apenas na condição de que eu consuma. Eu poderia argumentar que é como
sujeito que eu gostaria de ter os meus direitos garantidos. Inclusive o de
não consumir. Mas é o consumidor o cidadão ideal desse admirável mundo
novo.
Adiante-se, como curiosidade, que ser governado pelo culto a um
objeto sem o qual não se pode passar pode ser a própria definição de
perversão. Entretanto, é preciso “dar bois aos nomes” para entender como
este novo capitalismo e a globalização têm êxito em promover a perversão
generalizada. Não basta dizer que a globalização trabalha no sentido do
apagamento do traço próprio de cada cultura, que lhe confere legitimidade
e em relação ao qual cada um dos sujeitos que a habitam funda sua própria
pertença e que faz da nação, do país, a representação simbólica de um pai
em ralação ao qual podem se sentir irmãos. Apague esse traço e a
consequência será entre outras, a forma de violência à qual assiste,
chocada, a Europa atual. Afinal a moeda é um dos símbolos adscritos à
história de cada país. E não é preciso muita esperteza para concluir que
preço se paga pelo apagamento da história.
Numa economia globalizada não é imperativo que as dívidas se
paguem. Ao contrário, importa manter a peteca no ar. Todo mundo mais ou
menos endividado. Não demais, a ponto de ter que parar de consumir, mas
não de menos, a ponto de pretender ser independente... Manter esse
equilíbrio é algo que só se consegue ao preço de algum sacrifício. Em geral
dos indivíduos.
Imaginemos uma historinha nada exemplar. Um país qualquer, “a
land far, far way”, bate à porta da caverna de ali babá onde mora um fundo
internacional, de caneca na mão.
Sua riqueza são os produtos artesanais de palha trançada. Mas sua
pobreza o submete a um acordo pelo qual se compromete a entregar seus
chapéus, suas bolsas a preço de banana. Dependendo do modo de
engajamento de cada um dos outros países nesta sociedade, alguns serão
obrigados a importar os chapeuzinhos. Logo, no Brasil por exemplo, eles
estarão sendo comercializados a cincoenta centavos cada, nos centros de
cultura popular,enquanto os chapéus produzidos por uma comunidade dos
nossos caiçaras custam dois reais. Não será preciso muito tempo para que
essa comunidade seja reduzida à mendicância.
Interrompe-se assim uma longa tradição, passada de geração em
geração, como uma herança simbólica, que por vincular a condição de
sobrevivência a um saber fazer atribuído às gerações dos pais lhes
creditavam potência e lhes rendiam reconhecimento e o respeito das
gerações mais novas. Além disso, a preservação da técnica funcionava
como um eixo lógico em torno do qual a especificidade da cultura, quer
dizer, do discurso social, da arquitetura e da arte em geral, do sistema de
crenças, dos costumes enfim, passados de pai para filho se mantinham.
Quando o saber fazer paterno não serve mais para nada, não tem
mais como prover o sustento, torna-se fonte de vergonha para os filhos, que
têm que buscar sua subsistência por outros meios, em relação aos quais
seus pais são completamente ignorantes. Teremos criado uma comunidade
de pais humilhados, assim impotentizados e incapacitados de representar na
família a dignidade da função paterna, cuja tarefa na constituição de cada
sujeito é, entre outras, justamente de livrá-lo de ser um psicopata!
Não é preciso lembrar que enquanto isso, nos grandes centros, o
ideal de consumir a qualquer preço também faz suas vítimas,mas é a
manutenção desse estilo que exige que as engrenagens continuem girando,
a despeito da crueldade com que possa estar sendo tratada a hipotética
comunidade caiçara da nossa pequena fábula.
Voltemos a ela. Sabemos que, para cada um de nós, a tarefa de
crescer, deixar de ser criança e aceder à condição de sujeitos do nosso
próprio desejo,exige que renunciemos à ilusão do tudo poder, própria da
infância. Ao preço da incorporação dessa perda, porque por ela somos
condenados à palavra como meio de estabelecer com aquilo que nos falta a
única relação possível, a demanda, somos promovidos a seres falantes.
Portanto, tornar-se adulto exige que nos submetamos a essa lei
que impõe tal perda inaugural, lei que no vivido pela criança é representada
pelo pai. Percebido por ela como sendo aquele que possui as chaves do
paraíso e que a separa do idílico colo materno, empurrando-a para a vida e
forçando-a,pela falta que ai se instala,a desejar
Assim,ao contrário do que sonha a vã filosofia, a proibição, a lei,
longe de barrar o desejo é o que o prescreve e autoriza. Esta operação a
chamamos, em psicanálise, de metáfora paterna, Ela, que representa a
dimensão mais importante da função paterna, depende, para ter êxito, da
potência atribuída ao pai,que lhe confere alteridade num registro. E
autoridade em outro. As leis de que somos tributários, e que permitem a
nossa vida em sociedade, são incorporadas por nós por essa via,
originalmente, o que nos prepara para a legitimidade. Ou não. E nesse caso
a única relação que estaremos aptos a ter com as leis será a de
instrumentalizá-las a serviço do nosso próprio interesse.. E qualquer
semelhança com a nossa realidade, não é mera coincidência.
Se alijamos os pais da ferramenta necessária à tarefa que lhes cabe,
se os desacreditamos socialmente, se os transformamos em párias, quando
muito terão que contar com o amor destes,o que frequentemente é tentado
pela via do relaxamento de todo limite,ou da abstenção pura e simples.
Abrem-se assim as portas para uma perversão generalizada. Seria lícito
pensar que a contrapartida contribua para fechá-la?
Precavendo-nos contra os riscos do exagero, não haveria ai uma
pequena luz? Se fôssemos ainda capazes, a despeito da nossa obssessão
tecnológica, da nossa avidez pelo lucro a qualquer preço,de identificar cada
pequeno sítio que se encontre sob o cerco do progresso, onde a transmissão
da tradição como garantia de manutenção das leis ditas da linguagem que
representam o “ húmus humano “ esteja ameaçada, e ali fincar um pouco
dos nossos esforços,no sentido de proteger esse sítio,como fazemos com os
achados arqueológicos, ou com os ovos das tartarugas, seríamos capazes de
deter aquelas engrenagens? Ao menos ali, em um ponto? E se essas ações
se multiplicassem?
Certamente uma iniciativa como essa não poderia deter a espiral do
tempo, nem o avanço da selvageria inevitável da modernidade. E
possivelmente seria um equívoco e uma ingenuidade pretender salvar a
civilização do progresso e do futuro, como se fossem eles a ameaça. Mas,
salvar a civilização para o futuro e para o progresso, é obrigatório. E
este talvez seja o único sentido a dar, fora do mundo imaginário dos
quadrinhos e dos super heróis, à expressão “ salvar o mundo”.
Naquele dia em Laguna, ali, em pé, como encantada por aquela
mágica ancestral, ocorreu-me que, em sua simplicidade, a sucessão de
gerações de pescadores ali representada, verdadeiros autores daquela
liturgia, ignoravam a sua magnitude.
Assim como os pescadores e as suas tainhas, os botos não sabem
que podem salvar o mundo! Na condição de que os salvemos.
Como dizia Jacques Derrida, “ não estou certo de ter razão. Estou
certo de que isso deve ser pensado”.

por: Angela Valore