Pessoa e outras pessoas: Um ensaio sobre a função da angústia

Pessoa e outras pessoas: Um ensaio sobre a função da angústia

Angela Valore

Há alguns anos recebi um rapaz que se apresentava com um pedido bastante peculiar. Havia recentemente procurado um médico, queixando-se de fadiga, astenia, enfim, do que chamava de “grande fraqueza”. Depois de alguns minutos de consulta, o médico lhe prescrevera um ansiolítico. “Ele não me escutou. Ele não escutou nada”, foi o que me disse o jovem ao relatar sua experiência com o médico. E acrescentou: “Eu não quero que curem minha angústia. Ela é a única coisa em mim, que me lembra de que eu estou vivo”. O seu pedido, portanto, era o de não ser curado da sua angústia. E o que me proponho a discutir aqui é que função podemos reconhecer na angústia, que justifique semelhante pedido, a despeito do sofrimento que a acompanha. E também, que destino pior pode aguardar aqueles que cedem à tentação de evitá-la.
O desenvolvimento da função da angústia se dá sobre um eixo ao longo do qual se alinham as principais relações do sujeito. Esse eixo consiste, justamente, na introdução do falo imaginário inscrito como ausente, como negativizado, o (–φ) enquanto único e concreto operador da castração. E Lacan o introduz lembrando-nos de que, no que diz respeito à castração imaginária, dimensão na qual ela se torna apreensível por nós, não há imagem da falta. De modo que ali onde a falta deve aparecer, nada pode ser
representado, senão que o lugar da falta deve se recortar como um “em branco”. Um oco.
Indo direto ao ponto, qualquer ameaça de recobrimento, de obturação, de que esse lugar do (–φ) apareça como podendo ser habitado será vivida com angústia, que portanto é o sinal da ameaça de que a falta possa nos faltar. Que possa nos faltar o apoio da falta como garantia do desejo. Que possamos aceder a um gozo que signifique a sua extinção.
Portanto, a função do (–φ) é de constituir, esse vazio, que é também aquele onde a angústia pode irromper. A angústia aparece quando algo se manifesta nesse vazio, que corrompe a sua função estruturante. Ponto de cruzamento de diferentes séries, desenvolvidas por Lacan em diferentes momentos, das quais tentarei dar uma idéia.
Em primeiro lugar, a angústia como nodulando a relação entre o desejo e o gozo, situa-se como o sinal que surge quando a divisão entre eles ameaça se apagar, razão pela qual é descrita por Lacan como um fenômeno de borda.
No grafo do desejo, onde se apresentam as respostas possíveis ao enigma do desejo do Outro, ao Che Vuoi, sabemos que a resposta primeira, a que está antes do sujeito e que é condição da sua estruturação é o S (A), significante da falta de significante no campo do Outro. Verdade da castração do Outro enquanto desejante com a qual o pequeno humano tem que se encontrar ao vir ao mundo, para poder advir como sujeito. O primeiro objeto que o pequeno ser tem a oferecer ao Outro é, como sabemos, a sua própria morte, que é como Lacan o formula. “Podes me perder?” seria a pergunta que dirige ao Outro, de cuja resposta
depende que a falta possa se inscrever para o sujeito, constituindo-o como desejante.
A resposta afirmativa, a de que o Outro pode sim me perder, entretanto, não basta para me apaziguar com o fato inelutável da sua castração. De que o Outro não requer o meu despedaçamento. Eu preciso me certificar de que é a falta que é desejada. Aquilo que causa o desejo é o que pode ser visado por ele e não o que o obtura. Entretanto, o objeto a como causa do desejo não é separável do i(a), do eu. Ainda que o a seja real, como causa, não opera sem a roupagem narcísica que a imagem lhe assegura.
O desejo é sujeito a uma mediação na qual se articulam justamente o i(a) e o fantasma, no qual o objeto a, como real, enquanto causa, sustenta a divisão subjetiva. Mas ao mesmo tempo o objeto, se tomado como objeto do desejo detém a metonímia deste e o desvanecimento do sujeito. Nessa condição, o fantasma operaria como outra resposta ao Che Vuoi, além daquela primeira, insuportável em si mesma, mas suportada pela dialética que pode estabelecer com o fantasma e desde que ela se mantenha. E é justamente entre uma e outra que Lacan situa, no grafo, o lugar da angústia, como podendo sinalizar um fracasso iminente da função desse intervalo.
Se a angústia é o que assegura a divisão entre desejo e gozo, garantindo que esse não se dê fora dos limites que asseguram a vigência daquele, podemos pensar que ambos se mantêm, desde que a uma certa distância. E que a angústia se impõe também quando essa distância se estreita. A angústia é a guardiã dessa fronteira. Ela indica a aproximação do sujeito ao desejo do Outro como tal, na sua dimensão radicalmente enigmática, tanto que o
sujeito nunca sabe que a é para ele. E o fantasma é o último véu que protege o sujeito desse desejo.
Assim quando diz que a estrutura da angústia coincide com a do fantasma, Lacan se refere justamente a esse quadro através do qual eu vejo o mundo, e graças ao qual eu não o vejo propriamente, que ao mesmo tempo vela o mundo.
Se a moldura se mantém, como bastidor, ainda que a tela se apresente, a lembrança do vazio que me separa do objeto, e, ao mesmo tempo lhe dá lugar, está presente. Grande parte do desenvolvimento do seu Seminário X Lacan sustenta numa versão do esquema ótico. Ali o vazio atinente ao (–φ), refere-se ao gargalo do vaso de flores que representa a unidade do corpo em i’(a) imagem especular. Esse vazio do falo imaginário inscrito como ausente, determina que tudo que diz respeito ao falo não pode ser pensado senão como presença sobre fundo de ausência. Invisível que comanda o que é visível. E é por isto que o que quer que aí irrompa se apresenta como visão aterradora, visão que cega.
Esta terá sido com certeza a via através da qual Freud chegou a Hoffmann e ao seu conto, O Homem de Areia. Essa aparição magistralmente descrita por Freud como sendo terrorífica, não por ser não-familiar, mas por surgir ali onde nada é esperado e onde o quer que apareça, ameaça nos cegar. Unheimlich, o estranho no coração do familiar, que Lacan compara às três campainhas que anunciam a abertura do pano na boca da cena. Ali, no escuro do teatro, diante da cortina prestes a se abrir, “momento introdutório rapidamente elidido da angústia” sem o qual, ele nos diz, nada do que virá depois poderia tomar seu valor. Sem esse “o que virá?”, nada do que virá tomar lugar aí, no quadro vazio do palco se determinará como trágico ou como cômico.
Quem não tem fibra para suportá-lo, não vá ao teatro.
Precisamente neste dia, há exatos dez anos, ao intervir num encontro de Psicanálise e Direito eu falava a respeito de certos fenômenos já preocupantes, entre os quais as toxicomanias, sobre o que me parecia, então, um alarmante empobrecimento das ficções.
Parece que um número crescente dos nossos contemporâneos vem descobrindo, por assim dizer, que prefere não ir ao teatro. Vem escolhendo evitar a angústia.
Aliás, evitar a angústia a qualquer preço, remediá-la, parece ter se tornado um ideal para os nossos dias, cuja persecução provavelmente constitui uma das causas dos nossos piores males.
Há alguns anos vimos testemunhando o surgimento de diferentes hipóteses sobre quais poderiam ser os padecimentos subjetivos próprios do nosso tempo. É minha impressão que a resposta está no que alguns chamam de uma clínica do ato. Seja porque as vicissitudes a que está submetido o laço social, instituem uma verdadeira cultura de “monstração”, na qual o acting-out ameaça dominar a cena, quando dela não se precipita o próprio sujeito; seja porque o ideal do estancamento da angústia, entre outras coisas, deixa em seu rastro uma população de inibidos.
É dessa substância que me parece ser tecida a grande rede que aprisiona hoje, em sua armadilha, uma boa parte dos nossos jovens. Embora a geração que é a nossa, os tenha precedido também nisso.
Em uma conferência sobre a clínica contemporânea, Roland Chemama afirmava que ao refletir sobre as conseqüências de nossa ruptura com o laço social, era levado a propor o que chamou de inibição generalizada. Refere-se a uma dimensão da inibição
muito mais radical do que aquela, descrita talvez um pouco romanticamente por Freud, como afetando uma função que tivesse sido impregnada de um sentido sexual. Claro, em princípio toda ação pode “tomar um sentido sexual” na medida em que pode metaforizar o desejo e logo, a “posição sexual do sujeito”.
Então, quando fala de inibição generalizada, refere-se a casos, em que “o sujeito evita de se envolver em qualquer ação, de forma a nem mesmo encontrar esse tipo de questão”. Fala dessa recusa de envolvimento articulada, inclusive às depressões que tanto lugar ocupam na clínica atualmente. Entretanto, não penso apenas nesses quadros das grandes inibições ou das inibições generalizadas, mas também naquelas, silenciosas, tão silenciosas que se manifestam mesmo em nossos analisantes mais comuns. Inibições pontuais que muitas vezes acompanham sujeitos que embora estando em análise, quase nunca falam delas e quando o fazem é para manifestar sua pouca confiança de que, nesse campo, possam produzir alguma mudança.
Penso também nos momentos nodais de um percurso analítico em que a própria transferência pode, “tomar certo excesso de sentido” e assim operar um efeito inibitório para o analisante e mesmo, às vezes, para o analista, quanto à produção do ato analítico.
Há ainda um outro parentesco, do qual já tenho falado em outros momentos e que não é o meu tema aqui, mas que me parece cabível também incluir nesse campo. São aqueles que eu chamaria de desinibidos, uma vez que seriam os inibidos, que saem da inibição pela via do acting-out, entre os quais não hesito em incluir as toxicomanias.
Quadros que Lacan descreve como pertencendo ao que chama de zona de relação do acting-out. Aquilo que pede interpretação porque não o é, ainda, a não ser que possa ser tomado pelo Outro como endereçado a ele, pelo que Lacan afirma que o acting-out é transferência selvagem. Em outra ocasião já me ocupei do que, em minha opinião, presta-se a “domesticar a transferência selvagem”. Na metáfora de Lacan, “fazer o elefante selvagem entrar no curral”. Mas aqui, o que importa é lembrar que o acting-out nunca é acidente, mas que o “acidente” do acting-out se dirige ao Outro. Se há analista, se dirige ao analista. E importa também sublinhar o modo como a presença do acting-out é adscrita por Lacan à ausência do luto. Falávamos há pouco no acting-out como tentativa de sair da inibição. A elaboração do luto seria outra. Aliás, todo trabalho de luto bem sucedido reproduz a passagem da privação à castração. A perda priva. Elaborá-la atualiza a castração. Mas isso implica atravessar o desfiladeiro da angústia. Costear o abismo. Lançar-se sobre ele. Suportar a dor.
Não por nada a inibição, que também seria uma resposta possível ao Che Vuoi, uma pretensão de tamponar a falta no Outro, situa-se no extremo oposto ao da angústia.
Justamente, o ponto de irrupção do “estranho” se articula à cessão do objeto pela criança, e o objeto anal poderia ser o que melhor representa a série dos objetos cessíveis, já que sobre ele se vê bem como se exerce o caráter angustiante do desejo representado naquele momento pela demanda da mãe, e que testemunha mais o seu domínio por ordenar a reter do que a dar. É preciso que se o ceda, mas para fazer o jogo do gozo, é preciso que se o retenha. Por essa via, Lacan nos conduz a uma nova interpretação do que fora proposto por Freud, dizendo que há
inibição quando se dá a introdução numa função de um outro desejo diferente daquele que a função satisfaz. Assim, o lugar da inibição indica também o lugar onde o desejo se exerce e onde se enraíza o próprio recalque originário. É do que se trata na ocultação estrutural do desejo por trás da inibição.
O piso em que no grafo se situa i(a) a imagem narcísica, cujo suporte depende justamente de que o Outro dê a sua falta, é também o lugar onde se enoda a inibição. Na inibição, há na verdade uma tentativa de permanecer desejante como defesa, para inibir um ato que só é potencialmente angustiante porque vivido como podendo fazer surgir do unheimlich o pior, ou seja, o bem. Trata-se disso quando Lacan diz que agir é arrancar da angústia a sua certeza.
É inclusive de i(a), da manutenção da sua função na sustentação do desejo que depende o atravessamento do luto. O que confere à inibição e ao luto intransitável esse parentesco que Lacan não deixa de nos indicar.
Somos assim introduzidos em um desdobramento do luto na estrutura do sujeito. De um lado ele próprio tem que ser perdido como objeto de gozo do Outro. De outra parte, perde-se o Outro e é pelo lugar de causa que ocupava na relação que agora ele tem que fazer o luto. Se no luto o sujeito vacila entre a posição do $, sujeito barrado e do objeto a, o trabalho é justamente de restabelecer a função do corte fantasmático, $◊a. O que depende, naturalmente, da castração no Outro, o que faz com que seja no nível daquele primeiro viés que a falta possa faltar. Que possa faltar o apoio da falta no Outro. Se Lacan nos diz que a angústia não é sem objeto, refere-se ao surgimento desse heim, ali, onde deveria estar assegurado o lugar em branco, determinando-a, ou dando lugar às
inibições típicas da ausência do luto. E ele nos indica do que depende, afinal, que o luto transite: de que se possa dizer em que se fazia falta ao Outro. E alguém só pode se tornar objeto, ocupar o lugar do que causa o desejo do Outro, se tiver sido perdido. Apresentam-se, inclusive, os acting-out como tentativas de sair da inibição à qual o fracasso do luto ou sua ausência induzem e que Lacan tornou legíveis na tragédia de Hamlet.
Tragédia que não pretendo retomar senão para lembrar que ele tinha por mãe uma rainha, que não recuava diante de nada em sua determinação de servir-se dos objetos, inclusive da vida do filho, cuja tristeza lhe empana o gozo. O pai falecido que em vida não fora mais do que o cúmplice intimidado da voracidade materna, como homem não passara de um qualquer na fila, prontamente substituído.
Se o drama do filho era não poder produzir o ato a que se destinava, isso não faz mais do que confirmar a hipótese de que, nos casos de inibição se revele, com freqüência, que a submissão do sujeito ao que toma como vontade de gozo do Outro seja encorajada pela complacência do Ideal do Eu.
Na tragédia de Shakespeare, como na vida, em geral, a inibição não se manifesta apenas em relação ao impedimento quanto ao ato, mas impossibilita, talvez antes de tudo, perfilar-se ante o Outro do sexo e sustentar sem desfalecimento o impossível do gozo sexual.
Assim, Ofélia, a infeliz enamorada é abandonada ao desespero e à morte. Se o seu amor passa a ofender o jovem príncipe, não seria porque, em face da falência da dignidade fálica, suas pretensões o convocariam a um ato que ele então não teria
como sustentar e o gozo prometido se torna insuportável e obsceno?
Na cena de sua discussão final, diante da estranheza que ela manifesta, convencida que estivera da afeição que tinham, ele decreta: “... Porque o poder da beleza transformará a honestidade em alcoviteira...”e acrescenta: “Amei-te antes, Ofélia”. Deixemos por ora a história.
Meses atrás, reunindo coragem para enfrentar, nos Seminários RSI e O Sinthoma a retomada lacaniana dos temas da inibição, sintoma e angústia, interessada, portanto na questão das nominações, ocorreu-me a curiosidade de pensar sobre a função do escrito em outras combinatórias diferentes da de Joyce. Como quem procura, acha, acabei mesmo reunindo uma série de casos que interessaria analisar. Nenhum, provavelmente mais aparentemente enigmático do que o do poeta chamado “Pessoa”.
Embora no que diz respeito à questão da nominação este seja um trabalho em progresso, provavelmente ainda por muito tempo e que esteja longe o momento de concluí-lo, quanto a um outro aspecto creio ser possível compreender algo.
Pessoa, arrisco dizer, foi um grande inibido. Primogênito que aos cinco anos perdeu o pai; poucos meses depois, morreu o irmão de um ano de idade; no mesmo mês sua mãe conheceu e iniciou um relacionamento com um comandante, com o qual logo se casaria. A essa altura, Fernando Pessoa criou seu primeiro heterônimo: Chevalier de Pas. Assim, em francês, com toda a equivocidade que o significante “Pas” comporta. E escreve seu primeiro poema, “A minha querida mamãe”. Essa mãe que o leva de Portugal para viver em um país estranho, acompanhando o marido
transferido. Irmãos nascem e morrem. Pessoa inicia e abandona os estudos, abre e fecha negócios, cria poesias e poetas.
Numa breve nota autobiográfica escrita no ano de sua morte, relata sua história a partir do episódio inaugural da morte do seu pai, apresentando-se como “tradutor” e “correspondente”. Refere-se apenas ao que assinou como Fernando Pessoa. Nem menciona os heterônimos nessa nota, mas numa longa carta ao amigo Casais Monteiro dispõe-se a explicar a gênese de cada um dos heterônimos, sem esquecer os da sua infância. É pena que não possamos acompanhá-lo nessa impressionante descrição, da qual recorto apenas um mínimo fragmento: “...pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização... pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental... pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou, nem a mim, nem à vida”. E embora afirme não se confundir com nenhum deles, há pelo menos uma carta pessoal, uma carta de amor, na qual recorre a Álvaro de Campos.
Fernando Pessoa não conheceu o sucesso em vida. Escrevia muito, sob muitos nomes, para muitos jornais diferentes. Passava muito tempo isolado, vivia momentos de estremecimento e agitação. Descrito por alguns como um sujeito inquieto e por outros como enigmático e melancólico, um dos traços que mais chama atenção na sua correspondência pessoal, é a freqüência com que escreve aos amigos dizendo que planeja reunir tantos poemas numa publicação mas que os está, ora organizando, ora revisando, quando sabemos que conseguiu publicar um único livro em sua vida. Viajava pretendendo realizar algum projeto, hospedava-se em casa de amigos, mas adoecia de malestares equívocos e passava a estadia no quarto.
Pessoa nunca se casou. Amou uma única mulher, doze anos mais nova, com a qual manteve um relacionamento de anos, com quem se encontrava pouco e a quem escrevia demais.
Seria preciso debruçar-se sobre o texto dessas cartas para apreciar talvez o que se depreende delas. Há, me parece toda uma clínica da inibição a ser descoberta ali. Mas o certo é que num dado momento, não se sabe se ofendido com a paciência da namorada ou com seu afeto, o poeta escreve, numa carta que não seria a última, mas que é exemplar, que está decidido a por fim ao romance. Supondo provavelmente a surpresa de Ophélia acrescenta que o seu “destino pertence a outra Lei... está subordinado à obediência a mestres que não permitem nem perdoam”. E termina dizendo, assim como Hamlet, à sua que também era Ophélia: “Quanto a mim, o amor passou”.
Sabemos que isso não era verdade, nem para Hamlet, nem para Fernando Pessoa.
Mencionava há pouco a releitura dos temas da angústia, da inibição e do sintoma que Lacan empreende nos últimos Seminários, sobretudo XXII e XXIII, mas graças também ao que já adiantara no Seminário XX, com a distinção dos gozos. Embora, como disse há pouco, seja uma articulação ainda inacabada para mim, vemos que no Seminário RSI, Lacan nos apresenta três nominações, a partir de uma articulação entre o nó borromeu e os três termos de Freud. Tratar-se-ia não do nó planificado, mas do enodamento dos três semiplanos, o que permite representar a abertura ao infinito de cada consistência, criando-se no campo assim projetado os cantos da inibição, do sintoma e da angústia. O da inibição fica definido como intrusão no simbólico do que parte do imaginário.
Ao introduzir esse quarto anel do Nome-do-Pai que, enlaçado à cadeia borromeana faz falso buraco, conforme se solidarize com um dos três, Lacan diria que a inibição está ligada à nominação imaginária. No esquema a quatro simplificado, podemos ver como esse quarto nó nunca se enlaça diretamente ao elo que duplica, de modo que na nominação imaginária ele surge como sendo aquele que faz a ligação entre o Real e o Simbólico.
Assim podemos compreender que apesar da inibição ser do campo do imaginariamente simbólico, portanto concernente ao que do imaginário se desloca para o simbólico, impondo a ele a tal “Geometria Angélica” mencionada no Seminário XXIV, que desconhece a falta e a diferença, ao mesmo tempo ela põe em jogo a interseção do Imaginário com o Real. O que levaria Lacan a dizer, na lição de 9 de maio de 1978, do Momento de Concluir: “O que é a inibição? O real faz com que giremos em círculo, escapa-nos e é seguramente devido a isso que a inibição se produz na hiância entre o imaginário e o real”. Portanto, pondo em jogo o gozo do Outro.
Gozo do Outro que é estruturalmente impossível: entretanto, esta impossibilidade mesma, requer para se fazer reconhecer, e operar, a letra, o corte referente ao (–φ). Habitualmente a iminência desse gozo deveria ser barrada pelo próprio sinal de angústia. Mas nas condições estabelecidas na nominação imaginária, assim como se testemunha em certos lutos impossíveis, o “oco letrado de (–φ)” parece encoberto. Nesses casos, ao invés de se assegurar a saída que seria necessariamente anunciada pela angústia, o sujeito seria induzido a calar-se diante desse gozo intocável.
Parece haver algo de contraditório em fazer uma reflexão sobre as inibições generalizadas na clínica contemporânea, passa
r por um caso do século XII, e outro do século XX. Entretanto, se os elementos que eles têm em comum, para isolá-los antes era preciso saltar sobre séculos, hoje tropeçamos neles todos os dias.
Quanto a Hamlet, sabemos que fracassaram suas tentativas de sair da inibição e produzir o ato a que se destinava, sobretudo aquela em que se faz representar sobre a cena, culpado ele próprio do voto de morte ao pai. Entretanto, a morte de Ofélia e a possibilidade de sua própria perda, que a partir dali se representa, tornam possível o ato que daria descanso ao espectro do pai. Diante da cova aberta, testemunhando o luto de Laertes, produz-se finalmente o cálculo da falta que teria feito a Ofélia e a conseqüente identificação ao objeto do desejo como tal. Se o objeto desaparece, sua perda introduz, retroativamente a dimensão da incompletude, da falta, portanto do lugar de causa.
Estaríamos então autorizados a pensar que uma direção de cura nas inibições passaria pela chamada consumação pela segunda vez da perda, possibilitando a travessia de um luto paralisado? Mesmo que essa seja uma possibilidade, ainda restariam pelo menos dois problemas graves quanto a essa clínica. O primeiro, seria a pouca aptidão para o luto que se verifica em nossa cultura atual. E o segundo, diz respeito ao caráter improvável da demanda analítica nesses casos, sem o concurso da angústia e sem conflito. Sujeitos sob o efeito intoxicante de um gozo insidioso e plano, sentados diante dos seus computadores, relacionando-se com o mundo através deles. Pessoas de cujas vidas o sexo foi quase, ou completamente excluído, sujeitos cuja existência parece se sustentar unicamente da consistência de uma imagem, quer seja seu papel profissional ou um título, ou o que for.
Quanto a Pessoa, não é certo que o poeta, tenha chegado a realmente sair da inibição. Mas é provável que escrever, para o bem ou para o mal, tenha sido seu modo de viver com ela.Como ele mesmo o diz: “ Gosto de dizer.Direi melhor:gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis,sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie - nem sequer mental ou de sonho - transmudou-se-me o desejo para aquilo que,em mim,cria ritmos verbais,ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem.” Escutar num punhado qualquer dos seus versos pode nos dar uma idéia do modo como se representa: “Sou tão inerte, tão pobrezinho, tão falho de gestos e de atos. Por mais que por mim me embrenhe, todos os atalhos do meu sonho, vão dar a clareiras de angústia”. “A minha vida é como se me batessem com ela”; ou, “Quem me dera fosse o burro do moleiro / E que ele me batesse e me estimasse... / Antes isso que ser o que atravessa a vida / Olhando para trás de si e tendo pena...”. E para encerrar: “Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia / Não há nada mais simples / Tem só duas datas – a do meu nascimento e a da minha morte / Entre uma e outra coisa todos os dias são meus”.
Aliás, o poeta morreria aos quarenta e sete anos, sozinho em um leito do hospital onde se internara no dia anterior e onde escreve suas últimas palavras, não na sua língua pátria, mas em inglês.
Diante da própria morte, finalmente, ele pode por em palavras o que o fizera recuar diante da vida: “Eu não sei o que o amanhã trará”.
Eis aí. Diante da possibilidade da sua própria perda, teria ele afinal ocupado seu lugar na platéia e se preparado para as três
campainhas? Se Pessoa tivesse suportado, vivo, este enigma, talvez tivesse realizado seu amor com Ofélia, eventualmente se casado e posto uma porção de pessoas no mundo.
E nós, ainda teríamos Fernando Pessoa, ele, e os outros? Não sei... É curioso como o mundo sempre acha uma utilidade para os sintomas das pessoas.
Talvez nisso resida a particularidade da nossa posição, como analistas. A de que o nosso sinthoma, a psicanálise, não tenha utilidade nenhuma.

por: Angela Valore