O Corpo na Neurose Obsessiva

O Corpo na Neurose Obsessiva

Angela Valore 

03/11/2005

Se o corpo da histérica é Outro, que só pode retornar a ela refletido no espelho de um outro
olhar, o corpo do obsessivo é, desgraçadamente, seu mesmo. Prova, às vezes escandalosa para o seu
gosto, de um crime inaugural que ele não pode apagar, esse corpo, o neurótico sabe, está destinado à
morte. E não o estão todos? Por certo que sim, mas em nenhuma outra lógica isto é experimentado
com tal fatalismo quanto na lógica obsessiva. Se a histérica se engana a esse respeito, o obsessivo
sabe que é com a morte que pagará pela sua existência, porque é a uma morte que a deve.
O obsessivo deve. Mas deve, acima de tudo seu corpo. E de seu corpo, mais do que nada,
seu sexo. É como se, neste caso, ele fosse o beneficiário de uma operação ou de uma apólice, da
qual suspeita, ou sabe ser imerecida. E cujo prêmio, que está em seu nome, mesmo assim teme usar.
Ele é culpado. Culpado de poder fazê-lo. Culpado de desejá-lo. Aliás, é mais uma dívida. Ele deve...
ser culpado.
O obsessivo duvida. Por isto mesmo, ele duvida e deve ter razão de duvidar. Afinal, se essa
famosa operação que o tornou devedor tivesse sido assim tão bem sucedida, sua história não poderia
ter sido outra? Ele poderia estar morto. E no céu. Já que nos dizem que para lá não se leva o corpo e
porque o seu inferno, da dívida, é da vida. Ou, ele poderia ter recebido o castigo que merece e ter
saído dali reabilitado para ela.
Enquanto nem um nem outro destino se cumprem: nem ele paga o que deve e libera o que
está penhorado, nem ele vai ter com o Pai - onde se recrimina de ter desejado que ele fosse - o
obsessivo deve existir. Entre a obrigação de viver e a proibição de viver ele vai desdobrando sua
estratégia. De preferência, tudo em pensamento. Só em pensamento ... E quando, por um descuido
dos deuses, lograr fazer algo que lhe assegure o acesso a um possível objeto, será sempre por um
outro, ou para o outro que o fará.
Há essa imagem que sempre me vem, quando se trata da neurose obsessiva... casas de
penhores. Parece que a vida do obsessivo é aquele velho saxofone caríssimo, que não toca, ou
aquele relógio-cuco parado, que ele vê através do vidro, na vitrine da casa de penhores. Algo que é
preciso pagar para resgatar. Alguns acumulam moedas, outros, fracassos. E enquanto isto, vão
vivendo sem admiti-lo. E, para se permitir fazê-lo, alguns precisam se enganar de que não.
Ludibriam essa instância tirânica que lhes exige sua castração, reafirmando sempre que não, veja,
eles não estão vivendo. São inocentes disso. Sua vida está lá, sob cautela, à espera de que ele
finalmente a mereça.
Falar do corpo na neurose obsessiva, é quase como dizer que o rei está nu: todo mundo vê
mas não se fala disso, assim abertamente. Na verdade estamos o tempo todo dizendo desse corpo,
da sina a que o condenam as coordenadas obsessivas, mas cerni-lo diretamente não é fácil. Se
escolhemos passar pelo homem nos encontramos com o fato de que ele é um ser que não tem corpo.
"O homem é um puro espírito", como dizia C. Calligaris num seminário sobre o fantasma. O
homem é, na medida em que tem para com o Pai uma dívida simbólica. Que uma suspeita paire
sobre ela e conjure o obsessivo a recobri-la por uma outra dívida, imaginária, impagável, é só um
complicador a mais. Aí talvez resida a dificuldade do obsessivo: entre ser um homem, na medida
em que tem para com o Pai essa dívida simbólica e, nesse caso não ter que se ocupar de ter um
corpo; ou, por outro lado ter um corpo, pelo qual deve e cuja materialização pode condená-lo às
escolhas mais sacrificiais. Entretanto o modo como essa intervenção do pai implica à materialidade
do corpo masculino, ou não implica, é diferente do que se passa com a mulher cujo corpo porta a
diferença.
O que não torna mais divertida a neurose obsessiva da mulher. As mulheres obsessivas é
claro, percorrem um caminho um pouco diferente, no que tange à sua sexuação, mas, se isso as
torna um pouco menos devedoras do que o seu parceiro masculino, não as liberta, entretanto, dos
demais percalços que o atingem.
Quantas vezes em nossa clínica nos deparamos com mulheres, jovens ou não, de grande
beleza, que de imediato se percebe não ter para elas o menor valor? Carregam a beleza assim, como
se fosse apenas mais um fardo que as impedisse de passar desapercebidas. Isso é para matar de
inveja a histérica, cuja beleza, natural ou não, tem sempre que ser reconstruída diante do espelho,
tomando como referencial esse ângulo de visão outro, que em vão a orienta sobre quais
imperfeições corrigir, sem que ela pareça jamais conseguir disfarçar o defeito. Já que o defeito que
afeta o corpo da histérica refere-se a uma falha, à tomada imaginária de uma falta, enquanto parece
que o corpo do obsessivo, aos seus olhos, padece de um excesso.
Uma jovem analisante falava outro dia de suas "ganas de matar" a irmã mais nova. O que a
exasperava, eram as horas que ela própria passava se arrumando - "se produzindo"- era a expressão,
aliás que parece perfeita, entre outras razões, porque como numa produção de teatro, ela também
escolhia o guarda-roupa, os adereços, de acordo com o personagem. Isso, para no fim sair sua irmã
"de cara lavada, sem nem se olhar no espelho" indignava-se ela, "parecendo uma princesa de contos
de fada". Se o nosso tema fosse a histeria, este fragmento nos daria um bom viés par abordar o
problema da reivindicação. Mas, em se tratando de obsessão, cabe a pergunta: por quê uma moça
dispensaria os recursos que lhe permitiriam destacar seus atributos? Eu diria que não é garantido
que a beleza não possa ser vivida por ela, às vezes como inútil ou mesmo ofensiva. Creio que seria
assim porque uma beleza "em excesso" é algo que irrompe aos olhares, que se sobressai, põe em
relevo esse corpo que a obsessiva, talvez o obsessivo em geral gostaria de ver absorvido numa
topografia mais plana, mais simétrica e sem acidentes que convoquem demasiado o olhar.
A relação que o obsessivo entretém com o corpo. Eis aí um problema que não é de
cosmética. E que é preciso abordar. Por mais difícil que nos pareça descolar daquela série em que
estamos habituados a inscrever esta neurose, e sobre a qual em geral falamos, deixemo-la aqui
como referência necessária, como pano de fundo, sobre o qual passamos esboçar um outro desenho.
Se começarmos por aquela falha inaugural relativa ao recalque, de que nos fala Charles Melman1,
não será preciso passar necessariamente por todas as peças desse dominó até chegarmos ao
refinamento lógico do pensamento obsessivo, a cada aspecto da nossa clínica que ensaiemos
discutir.
Então, para ir em frente, sem mais demora: O que é um corpo? Ter um corpo não é coisa
fácil. Três em um, então, não é oferta que se arremate em qualquer liquidação. E não foi isso que
disse Lacan? Há um corpo do Imaginário, um corpo do Simbólico, a alíngua, e um corpo do Real,
do qual "não se sabe como ele sai ..."[2]
Muito antes disso, em Radiofonia [3], ele já asseverava que em nenhuma hipótese devemos
entender o corpo do Simbólico como metáfora. Tomado como "alíngua", seria o conjunto dos
traços, cuja fixação sela, a cada volta da demanda, a cada retorno pulsional, o corte pelo qual cada
pedaço do Real se perde. As representações, ou apresentações de coisa no dizer de Freud. Esse
selamento constitui uma espécie de "revestimento" Simbólico pelo qual, ao cicatrizar as bordas dos
orifícios, agora sim pulsionalizados, nelas virão se unir o real do corpo e o corpo erógeno.
O corpo do Simbólico é, pois, o que isola o corpo. Isola-o do Outro primordial na medida
em que o assegura o recalque primeiro, e é solidário do isolamento do excesso de gozo, o gozo
renunciado, e da delimitação, borda, que protege o objeto enquanto impossível.
Nas palavras de Lacan, "nada senão ele (o corpo do simbólico), isola o corpo tomado no
sentido ingênuo. Quer dizer aquele cujo ser que nele se sustém não sabe que é a linguagem que o
diferencia até um ponto em que, se não pudesse falar não se constituiria. O primeiro faz o segundo
de incorporar-se aí."
Quanto ao corpo do Imaginário, já o conhecíamos com Freud, no que primeiro se apresentou
a nós como tal, ou seja, o que ele nos dizia do corpo erógeno. O que veio depois, com o narcisismo
e com o estádio do espelho em Lacan nos esclareceu suficientemente quanto a essa passagem
necessária para que a falta se acomode e para que o sujeito se aproprie de um corpo avalizado pela
instância do Ideal.
E sobre o corpo do Real do qual Lacan dissera que "não se sabe como ele sai" é também do
que "concerne a algo que estaria no interior de cada um "que ele fala. E como nesse mesmo
seminário ele afirmava que o corpo é tórico, tratar-se-ia, então de saber que interior é esse, que
também está fora. É possível recorrer um pouco a topologia, embora houvesse talvez outros
caminhos, para lembrar o que, no toro que representa o corpo, o trique, é o interior. É aquilo que
estava fora, no furo, antes da operação de reviramento, que não é senão uma forma de falar da nossa
velha conhecida, a primeira identificação.
Passando reto por todas as dificuldades que ela nos causou em anos idos, hoje sabemos que
se trata da identificação ao Real do Outro real. E o que é Real do Outro real, senão "o mais inascível
dele", a essência ausente do corpo, logo sua falta? Sua falta no Real.
Eis o que se incorpora nessa primeira identificação. Esse é o fragmento de força a que aludia
Freud: a incorporação do vazio, que não é, nem remotamente a mesma coisa que não incorporar
nada. Trata-se do zero que só se pode contar um, se se chega ao três. Tal como as três identificações
não se contam em sucessão ordinal, pois é preciso o três para chegar ao um, assim também, não há
corpo sem os três [4].
E o que nos apontou Melman sobre a neurose obsessiva? Precisamente isto, que para o
sujeito obsessivo o Nome-do-Pai está perfeitamente simbolizado, dizia ele, até um pouco demais. E
que ao mesmo tempo, há uma insuficiência de eficácia pesando, ou fazendo leveza sobre o recalque
originário, que sabemos ser devido também ao Nome-do-Pai. Mas um outro, o Nome-do-Pai
enquanto Real do Outro real, logo, enquanto falta no Outro materno. É nesse ponto, diz Melman,
que as coisas ficam meio inacabadas. Pois este é o nível que opera como condição da segunda
identificação, pela qual se inscrevem os traços a que nos referíamos antes. Parece que aquele vazio
a que me referi a pouco, o obsessivo suspeita que não fosse tão vazio. Que o zero não fosse zero.
Talvez ele possa assim chegar ao três sem ter certeza de tê-lo conseguido.
Acontece também que a tal "falha interditiva do pai", se pensada à luz do que seria um
"nome-do-pai simbolizado até demais", viria dar numa fragilidade do pai imaginário. Como falta
esse testemunho da castração materna, ao qual corresponderia a garantia do atributo fálico estar
com o pai, aquele que seria o correspondente da falta no Outro no vivido da criança, esta não teria
nunca muita certeza se aquele recalque primeiro foi consumado ou não.
Se por um lado essa origem condena o obsessivo a uma verificação interminável, a manter
distância desse objeto mal isolado, mesmo que isso custe a mortificação do sujeito, por outro lado o
ameaça com a presença de um Grande Outro ao qual essa dimensão de abertura dá características
topológicas femininas, como nos ensinou Melman. O que explica o traço de feminização presente
no obsessivo.
Mas, se invocarmos agora tudo o que há pouco reunimos do que é um corpo, podemos
vislumbrar o quanto o corpo, para o obsessivo, pode se constituir num atrapalho. E não haverá
sacrifício que ele possa fazer, nesse culto ambíguo ao Pai, capaz de livrá-lo dele.
Um atrapalho, porque contém em seu interior essa marca suspeita, e que o conduz a um
sobre-trabalho de reforçar as bordas, de um nunca acabar de isolar suficientemente o objeto. Esse
temor de que o significante que deveria garanti-lo possa mancar ou, por falta de seu lastro, emergir
na cadeia que deveria sustentar, contaminando-a. Esse esforço permanente por voltar atrás
reforçando as amarras da pulsão, impedindo-o de ir em frente, de assumir plenamente seu dever
fálico.
O corpo do obsessivo converte-se, entretanto e ao mesmo tempo, de forma um pouco
paradoxal, num atrapalho que o impede também de se entregar completamente às defesas
apaziguadoras que se impõem a ele, de extrair delas todo o bem que gostaria.
Pois se ele deve abdicar do seu desejo, mortificar-se como sujeito, até o ponto da anulação, é
com o corpo como consistência incômoda que ele se encontrará, como barreira que resiste a uma
anulação perfeita. Afinal, se não se pode anular aquilo que se apóia sobre um ato, ainda que se
possa duvidar dele, como paralisar tão perfeitamente um corpo a ponto de evitar qualquer ato que
não possa ser anulado? Se ele deve temer o contágio, onde colocar esse corpo? Como lidar com o
corpo do semelhante ou de sua parceira?
Até mesmo certos extremos feminizantes a que o obriga o Outro, para acabar de castrar-se,
quando se trata de um pai demasiadamente impotentizado, encontrarão no corpo seu limite, se se
trata do campo da neurose.
E não importa que votos, que proibições, que penitências, que jejuns ou flagelos imponha a
esse corpo, não retornará sempre nele a tentação.
Talvez por isso certos jovens, que eu não diria que são verdadeiros toxicômanos, porque não
se encontra acoplada à sua organização em um corpo, o que chamei de montagem tóxica, mas que
pertencem ao registro da neurose obsessiva, podem suplementarmente ao sintoma recorrer ao
auxílio das drogas.
Como um bálsamo que pode suspendê-lo subjetivamente, com mais eficácia do que qualquer
outro ritual, porque dele esperam essa "detenção do desejo em narcose", em cuja vigência não têm
que decidir nada. Encontram nisso um meio de conter finalmente esse corpo num hiato sem atos.
É comum a pergunta pelas diferenças que se podem reconhecer entre esses casos e os das
chamadas fenomenologias de borda. São fundamentais e dizem respeito às operações a que me
referi antes, mas expô-las seria um outro trabalho.
Para finalizar, quero partilhar aqui um pequeno achado clínico sobre o que parece que seria
um ideal para o obsessivo pós-moderno, e que ilustra bem a relação que ele pretenderia ter com seu
corpo.
Há algum tempo recebi em análise um rapaz que me procurava, segundo ele, por insistência
do seu pai, que se mostrava preocupado com o futuro do filho. Ele? Não, ele não se preocupava
com o futuro. Nem com o passado. Ele vivia o presente. E como ele vivia o presente? Bem, ele não
estudava - sem preocupações com o futuro, lembram? Ele não trabalhava - não tinha "necessidades"
pelas quais precisasse pagar. O que ele fazia? Ele vivia "on line". Amigos? Os da internet.
Sua mãe reclamava um pouco, por que ele não lembrava de comer. Ou porque sacrificava
horas de sono, diante do computador. Mas o mundo estava ali dentro, "vocês compreendem?"
Quando a tela se iluminava, o mundo à sua volta se apagava. Ele até esquecia de ir ao banheiro!
Esquecia do corpo. Já havia tentado as drogas, mas elas o cansaram,"porque a partir de um certo
momento, o efeito passava e a vontade voltava". Também já tinha ficado com algumas garotas, mas
"elas pegavam no pé". Talvez quando encontrasse sua "alma gêmea"....
Esse rapaz, cuja entrada em análise foi, como se poderia supor, problemática, deu-me a idéia
do que seria, talvez um ideal para qualquer obsessivo : o de uma existência virtual.
Enfim, o corpo do obsessivo é um obstáculo. Um atrapalho que o impede tanto de ser um
bom obsessivo quanto de transpor a barreira do seu sintoma. Ao mesmo tempo em que o constrange
e o faz vacilar no limiar do seu próprio advento. Ele o mantém na linha... On line.

Referências Bibliográficas:
MELMAN, Charles - "Estruturas Lacanianas das Psicoses" Ed. Artes Médicas. Porto alegre, 1991. -
"A propósito da neurose obsessiva" in Cadernos da APPOA. Porto Alegre, 1990.
LACAN, Jacques - "L'insu que sait de l'une-bévue s'aile à mourre", Seminário 24 - inédito.
LACAN, Jacques - "Radiofonia" - versão em português elaborada para consulta interna, BFC.
CRUGLAK, Clara - "Clínica de la Identificacion", Ed Homo Sapiens. Rosário, 2000.
CALLIGARIS, Contardo - "O Fantasma Masculino e Feminino", Transcrição do Seminário ditado
em Curitiba em 1991.

por: Angela Valore